Mordi a bola fumegante e fechei os olhos de prazer e alívio. Desculpem se é chover no molhado, mas poucas coisas me deixam tão feliz como uma boa refeição. Pode ser grande, do tamanho de um almoço servido da panela pro prato, o caldo pingando na mesa, enchendo a boca de saliva. Pequena: uma goiaba madura, um pão de queijo. É agarrado nessa certeza que nos dias de pensamentos nublados, nem cismo — vou logo cozinhar qualquer coisa que me levante. Dou um jeito de fazer uma limpa na geladeira, aproveitar tudo o que parece esquecido e logo renovo o ânimo. Fervo uma sopa, um arroz de talos, sapeco qualquer coisa na panela, e arrefeço. Quando vi um pão de queijo que testei por instinto crescer e dourar no forno aqui de casa essa semana, foi como se tivesse recebido uma grande notícia. E não é uma grande notícia um pão de queijo sem jeito, feito de olho, com três ingredientes, crescer forte em Portugal, tão longe do seu habitat natural?
Vejo pão de queijo como mais uma das respostas do Brasil à tentativa colonialista de dominar também o nosso gosto. À intenção de transplantar para nossa mesa o hábito milenar europeu de comer pão, feito com farinha de trigo. No coração do Brasil, não. Pode-se até comprar pãozinho francês de padaria, amassar um ou outro pão, mas nossas farinhas são outras. Seguimos comendo cuscuz, tapioca, broa de milho, beiju, e, claro, especialmente em Minas Gerais, pão de queijo. Uma resposta elástica, de uma raiz prolixa chamada mandioca, símbolo de tantos pratos, jeitos e técnicas originais da nossa terra. Mandioca, macaxeira ou aipim diferem em regionalismos e variedades: brancas, rosadas e amarelas, as mansas, macias e doces, as bravas, mais fibrosas e amargas. Todas filhas dessa planta que é, em si, nosso pão; base de muitas das nossas cozinhas, parte do Brasil muito antes de aportarem na nossa praia. Já existíamos, cozinhávamos e comíamos bem antes de Cabral.
Talvez por saudade do meu país, uma saudadezinha de ouvir todos nossos sotaques, morder nossas frutas, me embrenhar em nossos botecos e me empanar nas areias das nossas praias, uma vontade insistente de pão de queijo andava me tentando o juízo. Começo a pensar em Minas Gerais, celeiro desse pão queijudo. Nas tantas idas em que vivi esse tempo dilatado, na cozinha monumental desse lugar, na arte e nos ofícios das mulheres que vem de lá: no café da Luci, nas telas de Maria Auxiliadora, nas letras de Adélia Prado, Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Ana Maria Gonçalves — todas obras de Minas — e vou acalmando as ideias. Folheio os livros que trouxe na mala e a angústia vai sumindo de vista.
Grande Desejo
Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,
sou é mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.
Faço comida e como.
Aos domingos bato o osso no prato pra chamar o cachorro
e atiro os restos.
Quando dói, grito ai,
quando é bom, fico bruta,
as sensibilidades sem governo.
Mas tenho meus prantos,
claridades atrás do meu estômago humilde
e fortíssima voz pra cânticos de festa.
Quando escrever o livro com o meu nome
e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja,
a uma lápide, a um descampado,
para chorar, chorar, e chorar,
requintada e esquisita como uma dama.— Adélia Prado, Bagagem, 1976
No trabalho das minas de ouro que deram nome ao estado, a mão-de-obra de africanos escravizados era seletiva, quase na totalidade formada por escravizados traficados desde a Costa da Mina. Era uma exigência dos senhores escravistas, uma vez que os negros minas detinham o conhecimento em mineração e metalurgia que faltava nos nativos brasileiros. Num intervalo de algumas décadas do século 18, o número de escravizados no território mineiro mais do que triplicou. Em 1786, eram perto de 174 mil concentrados apenas nessa atividade, separando as pepitas de ouro do cascalho depositado nos fundos dos rios. Nessa altura, o território mineiro já estava salpicado de quilombos, vendas, tabuleiros, quituteiras e todas as formas de resistência espalhadas por todos seus arraiais. Com elas, roçados do que a terra desse — de mandioca, sobretudo, e porque se prestava a muitos subprodutos. De um deles, o polvilho (ou fécula), invariavelmente, sem origem certa, em algum momento iluminado, nasce o pão de queijo.
Minha primeira lembrança de um dente de leite que perdi foi dentro de um pão de queijo borrachudo, no recreio da escola. Mordi despreocupado e vi a massa ensanguentada. Apoiei-me no bebedouro, bebi água e senti o gosto metálico. O dente tinha sumido no meio daquele mar liguento, e deve ter ido junto com ele pro meu estômago. Nas pausas da faculdade e dos cursos de teatro que fiz, pão de queijo era sinônimo de um instante pequeno, conhecido e seguro. O que havia de mais barato nas estufas, vendido em unidade se grande, do tamanho da palma da mão, ou pequeno em porções de números ímpares, no saquinho de papel pardo ou num copão.
Nada se compara, entretanto, à versão caseira, sovada à mão, dourada em assadeira surrada. Pelo saber-fazer que entende de texturas, misturas e pontos, mas também pela escolha criteriosa de ingredientes — polvilho, ovos, óleo, leite, queijo — e toda uma ciência envolvida por trás das proporções de polvilho doce e azedo (esse segundo, fermentado), sempre variável nas receitas tradicionais. Sobretudo pelo queijo, que quando assa enche a casa de cheiro, avolumando as bolas amarelas de miolo esponjoso, onças pintando sinestesia. Um dos melhores que já provei foi pelas mãos da Bruna Felizardo, que não é mineira. É grande cozinheira curitibana, neta de uma salgadeira de mão cheia, e foi quem teve o lampejo de colocar coração de galinha salteado e molho vinagrete dentro de um pão de queijo que já era incrível purinho. Coisa de um dia de sorte, num evento que fizemos juntos, ano passado, mas quem quiser provar a cozinha da Bruna é só chegar no Braseiro Labuta, recém-aberto na Lapa, no Rio de Janeiro.
Pão de queijo era uma receita que me metia medo. Até que um dia me atrevi a fazer, do jeitão que aprendi ser o mais antigo: bacia larga, escaldando o polvilho com uma mistura de óleo e leite quentes antes de juntar o resto. Lambança total, as mãos escorregadias, tudo grudado e melequento, fixando memória. Entre os dedos abertos e fechados, um ponto de desespero inexperiente em achar que aquilo nunca iria firmar. Firmou. Boleei, congelei, distribuí, assei. Gostei, mas minha cozinha de Copacabana era pequena para o trabalho que dava, e decidi simplificar. Testei com tapioca e até migrei pra air fryer, assando em formas de alumínio para empadinha.
Quando o João chegou da escola dei-lhe almoço. Depois fomos na cidade. Fomos a pé porque não tinha dinheiro para pagar a condução. Levei uma sacola e ia catando os ferros que encontrava nas ruas. Passamos pela rua da Cantareira. A Vera olhava os queijos e engulia as salivas. (…) Casa que não tem lume no fogo fica tão triste! As panelas fervendo no fogo também serve de adorno. Enfeita um lar. Fui na dona Nenê. Ela estava na cosinha. Que espetáculo maravilhoso! Ela estava fazendo frango, carne e macarronada. Ia ralar meio queijo para por na macarronada! Ela deu-me polenta com frango. E já faz uns 10 anos que eu não sei o que é isto.
— Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo, agosto de 1955
Uma amiga mineira de Alfenas foi quem me disse, orgulhosa, que pão de queijo não se metia com farinha de trigo. Para ela, pão de queijo raiz também não se media com mililitros, xícaras de chá ou colheres de sopa. Mede-se com prato fundo. Rende sempre receitas grandes, para muita gente, porque é ritual familiar. Faz-se com queijo artesanal, curado fora da geladeira, não os industrializados de massa clara, macia, imaculada, plastificada. Tão forte quanto o pão de queijo, na mesa de sua casa mineira havia o hábito do biscoitão, uma versão com menos queijo, oca e crocante, perfumada por um punhado de sementes de erva-doce incorporadas generosamente à massa.
Frutífera
– Da solidão do fruto –
De meu corpo ofereço
as minhas frutescências,
casca, polpa, semente.
E vazada de mim mesma
com desmesurada gula
apalpo-me em oferta
a fruta que sou.Mastigo-me
e encontro o coração
de meu próprio fruto,
caroço aliciado,
a entupir os vazios
de meus entrededos.– Da partilha do fruto –
De meu corpo ofereço
as minhas frutescências,
e ao leve desejo-roçar
de quem me acolhe,
entrego-me aos suados,
suaves e úmidos gestos
de indistintas mãos e
de indistintos punhos,
pois na maturação da fruta,
em sua casca quase-quase
rompida,
boca proibida não há.— Conceição Evaristo, Poemas da recordação e outros movimentos, 2008
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