
Poucas cenas me comovem tanto como um balaio cheio de quiabos. A fina penugem que os recobre o corpo. As fileiras de sementes que desenham mapas. Olho-os fundo, implacáveis em seus verdes, tão firmes e justos em suas próprias peles. Gosto deles por muitos motivos, mas só parando para escrever me dei conta de um que tem relevo particular: o quiabo é daqueles alimentos que apertam o botão de pausa no atropelo da vida supermercada. Subvertem a liquidez do tempo e pedem uma brecha para ir à feira. E numa feira, é bem neles que meu olhar estaciona.
Vendidos a céu aberto, livres, não embalados, iluminados por luz natural, costumam ser mais frescos e já bem escolhidos por quem vende. Pode-se tocá-los, e a segunda perícia é a mão de quem compra, apalpa seu corpo delgado um a um e quebra a ponta com rapidez, os confirmando para dentro do saco. Se romperem, é sinal de que estão bons, e ficarão macios depois de cozidos. Se curvarem é porque já estão velhos, fibrosos e mastiguentos. Luisa Macedo, na capa de seu livro O cheiro do gosto (2023), tascou um quiabo tão lindo que mais parece uma jóia, mas é justamente um quiabo fibroso desidratado, matéria-prima do pó de quiabo que Wanusa, uma das cozinheiras mineiras que entrevista, prepara e ensina no livro.
Quiabos apontam para o sol em busca de luz. Quem os cultiva sabe que o segredo é colhê-los com frequência para que estejam sempre tenros, crocantes, com as pontas que estalam e se quebram quando dobradas. O tempo do quiabo é o da urgência e quando esse tempo se dilata eles se tornam fibrosos, impossíveis de serem mastigados, como se tivessem acumulado calor demais, todo o calor de um verão.
Wanusa aprendeu com a mãe a prepará-lo quando fibroso, fazendo dele um pó. Desidratando o 'fruto-caverna' ela tem quiabo o ano inteiro para usar em caldos, guisados ou na carne de lata que aprendeu a fazer com o pai. Assim, reduzido a pó, ele renasce e volta a impregnar o espaço-comida com seu particular sabor de sol.
— Luisa Macedo, O cheiro do gosto
Cruzo a linha imaginária que divide Minas e a Bahia. Chego logo a Salvador, para onde embarco em poucos dias para começar minha pesquisa de campo do doutorado. É lá que o ar morno da tarde recende a azeite de dendê, e quiabos estão sempre presentes, vivos e vistosos, pelas feiras e mercados da cidade. Se a Bahia cultiva uma relação profunda, indivisível com sua ancestralidade africana, é quase automático pensar no que liga sua cozinha, sua cultura e a cultura do quiabo.
Responde a esse arranjo íntimo um fato botânico: o quiabo é da família dos hibiscos, nativo da África, e bem antes de pensarem em fazer dessa terra brasileira qualquer coisa, quiabos já eram o centro de muitos pratos, rituais e saberes do outro lado do mar. Estudando as cozinhas afro-brasileiras, as peças vão se encaixando. O quiabo tem um ciclo de cultivo curto e sementes discretas, de trânsito fácil. Batidas na terra nova, brotariam com rapidez, se espalhando e se espichando pelos roçados, tomando conta de tudo. Garantiriam a sobrevida de uma cultura alimentar original, renovando o vínculo irreversível com o lugar de onde se é. A boca que come quiabos, ligada à terra-mãe, também come fé, firmeza e coragem para seguir resistindo.
Infiltrado, o quiabo vingou e forjou vários espaços para seguir brilhando. Ganhou até um preparo que leva suas honras no nome: a quiabada, feita com eles em pedaços, um rico ensopado, também de tempero africano, veterano nos restaurantes cotidianos de Salvador. Antes dela, me encantei com os carurus. Com todo o preparo e a ciência para cortar o quiabo miudinho. A baba que despendia de cada colherada, puxada do panelão ao prato com vigor, deixando seu visgo pelo caminho.
Apesar de rechear acarajés, gosto mesmo de comê-lo como estrela principal, e sobretudo em setembro, no dia vinte e sete, quando vira protagonista do caruru de Ibeji, divindades gêmeas da cultura iorubá sincretizadas no catolicismo com São Cosme e Damião. O culto celebra a fertilidade, e sobretudo a continuidade e a descendência de que os gêmeos e o quiabo são símbolo, ideais tão caros às culturas africanas em diáspora.
Quando puxei o assunto, meu pai, soteropolitano, lembrou dos carurus de sua época de menino, rememorando sua criança cristalina. Me contou que na casa onde cresceu, e em muitas outras casas pela cidade, o dia era sempre sagrado e dedicado ao prato, ainda que não fossem de terreiro. Na intenção dos santos gêmeos, protetores dos erês, sete crianças da vizinhança deveriam comer um prato de caruru antes dos adultos, cumprindo todo um ritual.
Comiam “de mão”, sentados no chão, ao redor de uma mesma vasilha de alumínio que continha tudo o que manda o figurino de um caruru completo. Vatapá, xinxim de galinha, arroz branco, feijão preto, feijão fradinho, pipoca, palitos de cana fresca, fitas de coco seco, acarajé, abará, rapadura, milho branco, farofa, e, ufa, o caruru. O tempo foi passando, sóis nascendo e se pondo, e as crianças deixando de brincar na rua pela violência dos dias. As pipas que cortavam o céu com linha e cerol, virando as telas do celulares. E a tradição foi estiando.
Na casa da Jaci, grande amiga da família, no entanto, a partição segue viva: em vez da roda de meninos comendo com as mãos, ela convida a família, os amigos e os amigos de amigos para comerem seu caruru, e prepara sete quentinhas completas para distribuir às crianças do bairro que cruzarem seu caminho naquela tarde. A cada ano, porém, é mais difícil encontrar quem tope. Muitas crianças não aceitam, são de famílias evangélicas. Não comeriam comida de santo.
Em Portugal, há quiabos tímidos em barquetes plastificadas de supermercados. Não são os longos e lisos, mas de outra variedade, prima do carcará — curto, grosso e estrelado —, presente ainda hoje em muitas roças do Brasil e do continente africano, verdes ou roxos. Quiabos nos restaurantes daqui só vi em africanos ou baianos, nunca nos “brasileiros” que resumem nossa cozinha ao churrasco. Além disso, são caros e nem sempre fáceis de encontrar.
Em viagem à Albânia, vi mares desses mesmos quiabos bojudos nas ruas, mas nenhum quiabinho, vai entender, nos pratos de todos os restaurantes locais onde comi. Em Salvar o Fogo, li Itamar Vieira Junior., na voz da personagem Luzia, contar de um parto em que a mãe estava “tão relaxada na água que o menino escorregou feito um quiabo”. O provérbio africano diz: quem come quiabo não pega feitiço.
É Xangô meu terceiro orixá. O quiabo, seu alimento símbolo, o ingrediente principal de sua comida ritual predileta, o amalá ofertado na gamela de madeira a esse lendário rei iorubá. Talvez isso explique o que sinto quando vejo um balaio de quiabos falando comigo, me levando de volta a Salvador. Talvez explique as malas prontas pra lá.
Ah pronto, lá vou eu, em plena Santa Catarina, tentar achar quiabo pra hoje 🤣
Ah Mateus, te ler é um deleite impagável. Que essa nova jornada seja fresca, verde e Sábia como um quiabo dos bons ✨