Sal e pimenta (parte 1)
Histórias sobre as pitadas por trás (e por cima) de muita coisa na cozinha
“É um presente e uma sugestão de pauta”, ela disse, me entregando o vidro nas mãos e me dando um beijinho só, porque é de São Paulo, não do Rio. Fechado com tampa de cortiça, uma colherzinha de madeira presa do lado e uma fita azul em volta, era um vidro da flor de sal nacional, produto bastante comum e barato em todos supermercados de Portugal. Foi o presente que ganhei da Renata Senlle, nova amiga que fiz em Coimbra (e que em breve doutora-se em estudos feministas na universidade), quando veio jantar estrogonofe em casa, semana retrasada. Dividimos uma percepção comum, recém-chegados que somos, sobre o lugar esquisito que o sal ocupa na cozinha daqui. Num restaurante dificilmente se vê um saleiro à mesa — há de pedi-lo — e por mais que haja bacalhau salgado pendurado em qualquer mercearia, a comida portuguesa, em geral, não é exatamente salgada para o paladar brasileiro. Estatisticamente, Portugal ainda é um dos lugares onde mais se consome sal na Europa, mas se pararmos hoje numa tasquinha qualquer, é quase certo que as batatas fritas, saladas e outras guarnições serão servidas sem qualquer tempero. As azeitonas em conserva deles não costumam ter a mesma pungência salgada que de outros lugares, e não há sopa que não mereça um tiquinho de sal na hora de tomar. Como adoram diminutivos, o sal não os escapa: podes trazer-me o salinho?
Entendi que a percepção era mesmo coisa recente, já que, nos últimos anos, diante de uma população hipertensa, consumir menos sal virou uma questão de saúde pública. Fundamentada por um estudo científico que apontava o consumo de pão como principal motivo da quantidade de sal ingerida pelo português médio, uma lei em vigor desde 2010 fez do país, então, o primeiro do mundo a regular a quantidade de sal no pão produzido em seu território. O valor estipulado começou por estabelecer oficialmente o limite máximo de 1,4g de sal (ou 550mg de sódio) por 100g de pão pronto, com meta de recuar ainda mais. Só foram liberados da regra os pães regionais e com nomes protegidos, ainda feitos de forma artesanal, nos interiores, como o pão de Favaios, um pão de quatro pontas, ou a broa de Avintes, pão castanho feito de farinhas de milho, centeio e malte misturadas. Em outubro do ano passado, no Brasil, entrou em vigor uma lei que obriga a avisar nos rótulos de alimentos os que tenham alto índice de açúcar adicionado, sódio ou gordura saturada — mas que, apesar da sinalização, continuam lá. A culpa só passou para a mão de quem compra.
Nossos povos originários não tinham por cultura cozinhar ou temperar nada com o sal branco e marinho, como o conhecemos. Consumiam o sódio intrínseco a certos alimentos — peixes, carnes, algas — e alguns povos, como os Kamayurás, Guikurus e Yawalapitis, do Alto Xingu, tinham o próprio sal sazonal, o agarre (yügüh, em tupi-guarani), feito de aguapé ou jacinto-de-água, uma plantinha aquática flutuante de águas doces e paradas, nativa da Amazônia, hoje espalhada por muitos rios do mundo. O sal dela retirado é produto de um processo longo, de domínio ancestral da natureza: depois de secas ao sol, as folhas são queimadas, suas cinzas escaldadas e coadas num funil de palha trançada forrado com folhas verdes e um chumaço de algodão cru. O caldo resultante é fervido até que seque toda água, e mais uns sóis depois, tudo vire cristal, para ser usado com parcimônia, em doses homeopáticas. É rico em potássio em vez de sódio, mas tem o mesmo efeito salgado no gosto.
Há muitos outros registros de sais indígenas vegetais; alguns de cascas de árvore, outros de miolo de palmeira, mas todos feitos pelo mesmo beabá — a espécie de lama resultante da cinza lavada, que, quando seca, vira sal. Muitos nem chegavam ao passo final, e por vezes assavam peixes e beijus nessa própria cinza salgada, que era, ao mesmo tempo, forno e tempero. Não é mera coincidência pensar no sabão feito de cinzas remanescentes dos fogões à lenha em muitos quintais do Brasil, por exemplo, preparados de um jeito bem similar, já que saberes assim se entrecruzaram todo o tempo em nossa formação cultural. Ironicamente, diante da crise humanitária que assola os povos Yanomami na Amazônia, o governo federal teve que se posicionar quanto às doações de bens alimentares ultraprocessados, lotados de sódio. Foi preciso lembrar que biscoito e macarrão instantâneo não faziam parte da dieta desses povos, e sim alimentos saudáveis e culturalmente adequados como macaxeira, arroz, farinha de milho e banana-da-terra.
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Sal não tem sabor, ele próprio, mas acende o sabor dos outros. Incorrompível por natureza, de símbolo de castigo a oferta divina, não são poucas as passagens que esse mineral aparece na bíblia sagrada. Multiuso, condimento e conservante, sempre foi objeto de transações comerciais importantes. Antes da invenção da moeda, era feito de sal o pagamento de soldados romanos, o que originaria, para as línguas derivadas do latim, como o português, a palavra salário. Podia não ser prático, mas era duradouro, vital para o funcionamento da sociedade da época e de grande liquidez, pronto a ser trocado por qualquer outro bem. Salada também tem a ver com sal porque designava, em essência, um prato de vegetais temperados com sal. Sem querer fugir demais do assunto, o próprio salgado, instituição brasileira de massa recheada, frita ou assada, e o salgadinho, sua versão de ponta de dedo, derivam também dessa mesma raiz (nesse guia valioso pelas estufas de padarias, confeitarias e pastelarias de São Paulo, a noção justíssima de que “os salgados e salgadinhos deveriam receber um grande pedido de desculpas”).
No arquipélago de Cabo Verde, a Ilha do Sal tem esse nome pelas salinas que movimentaram sua economia no século 17: numa lagoa de água salgada alimentada pelo mar, formada na cratera de um vulcão extinto, havia uma mina de sal que rendeu dinheiro e sangue à região. Até tempos recentes, sacas de sal ainda cruzavam o deserto do Saara no lombo de camelos em caravanas de tuaregues, povos nômades africanos, retirados do chão em placas duras, em minas no leito de lagos secos no norte do Mali. Culturalmente, sal ainda é veículo de modas (o tal sal rosa do Himalaia está aí, nem é tão benéfico assim e nem vem do Himalaia, mas de uma mina do Paquistão) e superstições, como a crença de que derramar sal no chão traz má sorte, passar o saleiro de mão em mão é presságio de briga e banhar-se com sal grosso ou colocá-lo atrás da porta de casa afasta energias negativas.
Em Portugal, uma das regiões celebradas pela qualidade do sal é a zona costeira de Aveiro, antigo centro de extração salineira, e por um destino comum, já que a região era também a capital portuguesa do bacalhau, porto de entrada e saída para a pesca da espécie gadus morhua nas águas geladas do Atlântico Norte. Um peixe vendido essencialmente… salgado. Se o sal fino de mesa costuma ser feito industrialmente, em grandes evaporadores de aço-inox, entre quatro paredes, os d’Aveiro são feitos na linha do mar, a céu aberto, seguindo o mesmo método tradicional de produção. Por esse sal de qualidade entende-se que não é refinado ou lavado, mas rico em outros minerais e feito em escala menor. Lá fomos nós até Aveiro, a menos de uma hora de trem de Coimbra, abraçar um domingo de sol e essa pulga que virou pauta.
Contraponto ao doce bem doce de ovos moles, as salinas (ou marinhas, como se diz em Portugal) são a atração principal da cidade. Graças à biodiversidade que se desenvolve naqueles grandes tanques rasos, escavados na lama uns colados nos outros, o sal de Aveiro é um sal vivo, em que não há intervenção química, e por conta de uma alga específica que lá cresce, acredita-se que tenha um cheiro residual sutil de violetas. Todo ano, o trabalho começa limpando os tanques das lambanças do inverno. A água captada do mar é depositada no viveiro alimentador instalado no topo de um sistema onde a água vai caindo ao tanque seguinte por ação da gravidade. Decanta, e de tanque em tanque, dias de vento e de sol, evapora mais um tanto, ficando mais e mais salgada, até que comece, “nos finalmentes", a cristalizar.
O processo complexo, rodeado de um léxico muito particular, começa assim que cessam as chuvas, no início da primavera, e dura até quando voltem, já que a ideia é tirar água, não por. A cada safra, é no ofício do marnoto, tradicionalmente realizado por homens, onde mora o conhecimento: preparam os tanques e acompanham cada sopro de vento, remexem as salinas e coletam manualmente o sal com grandes rodos de madeira, as alfaias. A flor de sal é a primeira a despontar, a nata da coisa, coletada na superfície das salinas com uma alfaia que leva um tipo de malha metálica na ponta. Diferente do sal em si, de grãos mais grosseiros e duros que se depositam até o fundo de cada tanque, a flor de sal tem textura delicada e flocada, formando escamas que se desfazem entre o indicador e o polegar, entre a língua e o céu da boca. No verão, enquanto é possível ver os marnotos empurrando e erguendo montanhas de sal, as marinhas ainda abrem algumas piscinas dessas águas salgadas só para banho, prometendo esfoliação com flor de sal e dizendo que a lama dali é medicinal. Prometi que iria voltar.
Filha do mar e do vento, a costa do nosso Nordeste tem no Rio Grande do Norte sua produção mais expressiva de sal e flor do sal desse jeitão tradicional. Documentos históricos dos tempos coloniais já contavam que na mesma faixa litorânea desse estado e de parte do Ceará já se via a formação grandes várzeas que eram salinas naturais, feitas de água do mar naturalmente represada e cristalizada. A produção salineira potiguar ganhou impulso ao lado da indústria de charque, a carne seca conservada no sal, e, no início do século 19, Portugal tratou de suspender a importação de sal para o Brasil, usando apenas a produção nacional. Também já se falava da vocação salineira na Região dos Lagos, no Rio de Janeiro, onde ainda existem salinas ativas, ainda que em menor escala, em cidades como Cabo Frio, Arraial do Cabo e Araruama.
Como se não bastasse ter tudo isso fervendo na cabeça, foi justo ele, o sal, um dos assuntos principais da minha primeira aula de Alimentação, Medicamentos e Venenos, disciplina que comecei esse semestre no mestrado. Entre folhas de cicuta, mamonas e outras plantas assassinas, é o sal um dos grandes venenos que andam minando a saúde da população mundial, cada vez mais dependente do consumo de alimentos industrializados. Mais lento, silencioso e letal que a picada de muita serpente. Diferente do sal, que veio de todo lugar, a pimenta, como boa parte da graça do mundo, veio primeiro de África. Mas essa história fica para o domingo que vem.
Mateus, amo seus textos! Nem sempre posso lê-los, mas sempre que arranjo um tempo, não me arrependo. Se tiveres condição e vontade -- claro -- veja, "O Homem que Comeu de Tudo" de J. Steingarten. Lá, se não me falha a memória, tem um capítulo sobre o sal. E, se novamente não me engano, na época, ao menos, constava os Yanomami como o povo de menor pressão arterial. Isso faz mais de 25 anos. Qual a situação hoje? Ainda bem que o governo tomou a iniciativa de orientar as doações: nada de alimentos processados! Abraço.
senSALcional essa news ... obrigada por tanta pesquisa e conteúdo ....