Faz tempo que esse texto quer brotar de dentro de mim e simplesmente não consegue. Quem não consegue, na verdade, sou eu. A tarefa supõe um mergulho profundo na minha ideia de ética alimentar, num conflito moral com meus próprios valores. Na importância da cultura aprendida, mantida e transmitida por meio da alimentação ao longo de gerações, mas também da consciência como forma de mudar a cultura, se preciso for. A razão pela qual escolhi esse título — sobre comer animais não-humanos — é um ponto de partida. A linguagem tem valor monumental em nossos códigos alimentares, e o uso desse termo, animais não-humanos, comumente adotado por vegetarianos e veganos para se referir aos animais que o resto da pessoas come, aparece como forma de lembrar que humanos também são animais. Esquecemos o quanto acreditamos na supremacia da nossa espécie em detrimento das outras do nosso reino, o animal, num exemplo claro do nosso especismo. Para nós, animais são os outros. Onipresente, a linguagem nos relembra que não.
O tema é denso. Tenso. A discussão tem muitas nuances, e não pretendo dar conta de todas elas. Falar de especismo, particularmente, me parece um bom começo. O conceito é definido pela discriminação da espécie humana em relação às outras espécies animais como forma de hierarquizá-las. Há um aspecto seletivo dentro dele: por que razão naturalizamos o consumo de carne de vaca e escandalizamos ao ouvir falar em carne de cachorro, comum em outras culturas, por exemplo? A maioria de nós não sabe, mas o Brasil já foi o maior exportador mundial de carne de cavalo, apesar de não consumi-la. Mas o que nos cachorros ou cavalos os separa das vacas ou galinhas? Desenvolvemos com eles uma relação tão próxima que os consideramos superiores na escala de espécie, mais próxima da humana, muitos degraus acima no fosso da nossa discriminação. Peixes, por exemplo, ainda parecem estar abaixo dos mamíferos só porque vivem na água, distantes de nós, terrenos, e porque parecem ter menos sentimento que os outros animais. Não mugem nem choramingam; não mudam o jeito de olhar ou ficam faceiros quando recebem carinho.
Antes de tudo, é preciso entender que o consumo de carne de certos animais no Brasil é um aspecto cultural. O próprio prato feito, passaporte alimentar que rasga todos os brasis de fora a fora, é quase sempre centrado num pedaço de carne. Aprendemos a comer assim, escolhendo a carne primeiro e chamando todo o resto de acompanhamento. Para a percepção do brasileiro, grosso modo, é a carne que dá sustância ao prato. Muita gente acredita que qualquer prato sem carne não é completo do ponto de vista nutricional, quando a verdade é que, na maioria das vezes, pratos com carne, arroz e feijão são exageros proteicos. Sempre falei com os olhos brilhando de rabadas, cabidelas de galinha ou pernis de porco pelo que representam em termos identitários, mas não se pode romantizar: é importante lembrar o que o consumo de carne significa em outros sentidos, para além da tradição em que se inscrevem. Por mais que tivesse sempre sublinhado nos textos dessa newsletter que todo gosto alimentar parte de uma poderosa raiz cultural, me incomodava em seguir falando disso sem levantar a questão. Hoje, o faço.
Há diferentes gradações e qualidades de vínculo com o consumo de carne. Uns só comem, nem ligam, sequer pensam sobre o assunto ou consideram uma mudança de hábitos. Outros até pensam, se culpam, ponderam, mas não o suficiente para mudarem de maneira substancial a forma como consomem. Para muitos a questão é mais forte que qualquer juízo de valor: não comem porque simplesmente não podem comprar — daí a picanha ser um objeto comum do desejo, porque é também abundância e dignidade, antítese da escassez. Num outro extremo há os carnívoros inveterados, quem pelo gosto desmedido por carne vermelha goza da plena posição de predador que acreditam ocupar, no topo da cadeia alimentar. Não estranha que alguns formem uma tribo com traços comuns: costumam ser homens, brancos, broncos e de barba farta, churrasqueiros de voz grossa e com o semblante malvado. Muito masculinos, reforçam suas cisgeneridades ocupando o centro das atenções com aventais pesados e grandes facas em vez das garras e caninos pontudos que não têm. Assam carnes aos domingos, por diversão, já que há quem cozinhe para eles em todos os outros dias da semana.
Na ponta oposta, o movimento mais importante: cada vez mais pessoas, por convicção adquirida ao longo de um processo demorado ou a partir de um episódio fatídico, giram a chave e decretam a mudança, com mais ou menos implicações em seus estilos de vida. Deixam de comer uma ou todo tipo de carne de um animal que não seja humano. Muitos o fazem sofrendo, sentindo falta do gosto, cimentado pela força do hábito. Outros aproveitam e param justamente porque não gostam ou não digerem bem, e para esses, imagino que a transição não deva ser tão penosa. Uns rompem pelo sofrimento animal, por exigirem respeito a eles; outros, pelos impactos generalizados da indústria da carne no planeta. Alguns, por tudo isso e ainda mais, estendem as restrições aos derivados, bem além do leite: roupas de legítima lã, cosméticos testados em animais, mel de abelha, gelatina e até vinho, já que muitos produtores usam tração animal nos vinhedos ou proteínas do leite ou do ovo no processo de clarificação que deixa a bebida límpida. Uns com os olhos no individual, outros no coletivo. Mas, afinal, por que raios é importante repensar nosso consumo de proteína animal?
Uma coisa é o consumo sustentável, quase idílico de carne, possível apenas em contextos rurais. Um porco de quintal criado e abatido em uma festa da família ou da vizinhança, pretexto de convívio e partilha, usado do focinho ao rabo em datas especiais, distribuído ou conservado em sua própria gordura para ser consumido ao longo do tempo. Uma coisa é o uso de animais para a comida ritual de religiões de matriz africana, de procedência e abate responsáveis e respeitosos, que alimentam o sagrado e a comunidade, ode ao comer junto, e ainda dão aula no uso integral e reaproveitamento total, anos-luz à frente dos restaurantes mais conscientes. Outra, é pensar na carne como produto de um sistema de capitalismo industrial, de proporções gigantescas e implicações severas em todas as esferas — econômicas, políticas, sociais, territoriais —, o mais danoso para o meio ambiente, grande acelerador da mudança climática que ainda insistimos em não querer enxergar. Nos grandes centros urbanos, comer carne significa, sim, compactuar com esse modelo em alguma medida. Aceitar o uso abusivo de remédios injetados nos bichos, entranhados na ração que os engorda, pulverizados sobre a terra onde eles andam, quando andam. Implica em desmatamento, invasão de terras indígenas, emissão de gases de efeito estufa, uso desmedido de água, agrotóxicos e uma lista infinda de outros abusos difíceis de engolir.
Não são poucas as indústrias predatórias ligadas à indústria da carne de vaca, mas também na produção de laticínios e na avicultura para carne e ovos. A decisão de não comer carne e derivados animais, por tudo isso, aparece muito ligada a um rompimento radical e consciente com esse modelo massificante de produção e consumo. Um dos argumentos mais potentes do veganismo é que deixar de comer carne vermelha, apenas, não resolve todos os problemas. Pensemos no leite de vaca. Somos os únicos mamíferos que seguimos bebendo leite depois de desmamados. Leite de uma vaca, não de uma humana; forte o suficiente para os chifres, o rabo, os cascos que sua prole de quatro patas precisa desenvolver. Quem toma leite ou come manteiga todos os dias precisa saber que esse hábito, além de implicar em vacas sempre prenhas, ordenhadas de maneira intensiva, presume também o nascimento cíclico de bezerros abatidos pela indústria de corte. Ovos ou coxas de galinha destinados ao consumo de massa pressupõe as mesmas condições esgotantes de produção. Não existe almoço grátis.
Um dos mitos criados para deslegitimar as dietas vegetarianas e veganas é dizer que tratam-se de escolhas elitistas. Que a própria possibilidade de escolher o que comer é um privilégio de um grupo econômico específico. Mentira deslavada, já que vegetais são sempre mais baratos que carnes. Claro que há correntes que podem se basear em amêndoas, tofu e cenouras orgânicas de todas as cores do arco-íris, mas não nos esqueçamos do arroz e feijão, base da nossa alimentação, e que alimentam muito, a muita gente. Proteínas em leguminosas abundam, gergelim tem mais cálcio que o leite de vaca, tubérculos são nutritivos e saborosos de todo jeito. Pipoca, paçoca e acarajé são veganos. Feijões arrasadores feitos só no louro e no alho, também. Basta abrir os olhos e a cabeça para ver o tanto de vegetal que está aí, dando sopa, sendo jogado fora, esperando por nós.
Anos atrás, quando entrevistei Regina Tchelly em sua casa, no Morro da Babilônia, percebi, talvez pela primeira vez, que dava pra ser muito feliz comendo só vegetais. E ainda gastando pouco, de olho na xepa da feira e no uso integral dos alimentos em suas inteirezas múltiplas. Até meus últimos meses de Brasil, comprei os hambúrgueres de feijão e beterraba e a carne de jaca verde cozida que Regina prepara e vende congelados, parte de seu projeto, Favela Orgânica (todas as receitas de Regina estão aqui, nesse link). Pouca gente sabe que a jaca verde, elefante branco pendurado em jaqueiras que se espalham por toda a cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, tem a carne dura que, depois de cozida na pressão, vira pano de fundo de gosto neutro e aspecto desfiado, ultraversátil. No TikTok, Thallita Xavier põe em cartaz um veganismo exemplar e acessível, feito dentro da favela.
No ambiente das newsletters, uma troca de cartas entre
e Vanessa Guedes, da, lançou reflexões muito pertinentes sobre esse assunto. Ariela come carne. Em seu texto, discutiu as fronteiras movediças entre as ideias de ética, pureza, renúncia e repulsa, e a tomada de consciência por meio da problemática indústria da carne como jeito eficaz de acordar muita gente. Vanessa é vegetariana há mais de uma década e vegana desde 2019. Lá chegou pelo feminismo, que tratou de unir as duas reivindicações, a dos direitos das mulheres e dos animais, grupos cujos corpos são postos à margem pelo olhar hegemônico da humanidade. E se ninguém manda no meu corpo além de mim, por que o corpo dos animais pode ser violado? Qual a diferença entre o meu corpo e o deles? Por que o meu sentimento de estar viva fica acima do sentimento de estar vivo de outros seres?, se questionou.Quando escreveu sobre vegetarianismo enquanto estética alimentar,
falou dos alimentos plant based que invadiram as gôndolas dos supermercados na última década, e do disparate que é pensar em alimentação ética mediada pela indústria de alimentos ultraprocessados. Trata-se dessa mesma indústria da carne vermelha, mas fantasiada de verde, interessada em expandir seu mercado, não em resolver os problemas que ela mesma causa. Coisa parecida acontece com as carnes ditas sustentáveis, de gado criado solto e alimentado a pasto, mas nas terras dos mesmos conglomerados monopolistas de sempre. No fim do dia, usam da falácia do bem-estar animal para atualizar a mesma indústria de morte. Fazem-nos acreditar piamente que nenhum animal sofreu para que aquela bandeja estivesse ali, limpa e reluzente. Fetichizada, a mercadoria se floreia e a exploração por trás dela é apagada. Se não vemos o sofrimento, não participamos. O mesmo prejuízo ocultado em todas as grandes indústrias capitalistas, não só da carne — mais recente foi o caso apavorante das vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, que usavam mão de obra análoga à escravidão nas colheitas de sangue de suas vinhas envenenadas.Conseguem o que querem: muita gente atravessada pelo aspecto cultural, mas também pela força da indústria e do mercado, tem dificuldade de entender ou se encontrar com essa ética de consumo. Muita gente não consegue desapegar das vontades individuais por um sistema maior que a si mesmo, e talvez não porque falte empatia, mas porque o mercado faz um esforço sobre-humano para não deixar essa peteca de ouro cair. No fim das contas, é o nível de informação, tolerância, empenho ou cinismo que mora em cada um de nós. São posições diferentes de esclarecimento e comprometimento frente a todas essas questões, e por motivos diferentes, tão individuais quanto o timbre da nossa voz.
Pessoalmente, para ser muito honesto, gostaria de ter essa ética tão aflorada a ponto de conseguir radicalizar meu jeito de consumir. Admiro e me identifico com a causa, mas ainda não o suficiente. Tenho plena consciência que é possível existir nutricionalmente de tudo mais que não tenha sangue ou venha de um outro animal como eu, mas ainda não consigo deixar de desejar e comer alguma carne, mesmo que pontualmente, ao menos uma ou duas vezes na semana. Não consigo virar as costas para a força da cultura alimentar de cada lugar. Apesar disso, mais estudo, mais entendo que se não mudarmos, mesmo que aos poucos, o sistema vai colapsar. Ainda mais.
Quando passei a morar só e ganhei mais autonomia alimentar, fui identificando um estranhamento no próprio costume em preparar carne em casa. Não me corrigi do que poderia parecer frescura, pelo contrário: fui deixando que aumentasse naturalmente minha reticência em manipular as peças cruas, secciona-las, deslizar a faca pelos nervos, as artérias, os ossos. Melar a mão da cor vermelha profunda, da mesma cor que devia ser a minha própria carne, como numa aula de anatomia que nunca tive. Pelo privilégio de não precisar preparar minha própria comida por muitos anos, pude escolher começar a cozinhar levando em conta certos parâmetros, questionando certas realidades já dadas. Quem cresceu tendo de cozinhar, ou mesmo quem cresceu na roça, não tem a mesma cerimônia ao mexer em carne crua, queimar os pelos de uma barriga de porco ou ver uma galinha agonizar no quintal, com o pescoço torcido, na beira da morte. De novo, pura questão de cultura.
Não disse que o assunto era denso? O importante, no meio e no fim de tudo, é sempre dar nome aos bois — o capitalismo industrial. Para que a vida na terra redonda possa vigorar, é urgente mudar os modelos de produção em massa, desacelerar, descentralizar. Comprar de pequenos produtores ajuda, mas em muitos casos ainda é um comportamento restrito a uma elite que pode pagar mais. Para que todo mundo possa, muita coisa tem que mudar, e só muda se todo mundo falar e fizer, e falar alto, para ser ouvido. Transformar segundas sem carne em eventos cada vez mais frequentes, não só às segundas-feiras, e não só para postar com hashtag no Instagram. Levar atenção para todos os tantos tipos de vegetais, e não só às poucas dezenas que estamos acostumados a comer. Olhar às tantas variedades de batatas, tomates, couves, arrozes e feijões existentes, todas plantas comestíveis, matos e flores, bulbos e sementes, cascas e talos. Comer como numa propaganda de xampu — da raiz até as pontas — e entender o poder que temos nas mãos ao escolher o que comer e o porquê. Começa em mim e em você.
Fantástica essa news! Sou consumidora eventual (e cada vez menos) de carne e me identifiquei demais quando vc fala na questão da manipulação - comprar, preparar e armazenar carne crua pra mim é uma imensa dificuldade e conto nos dedos quantas vezes consegui. E reside aí uma imensa hipocrisia ou no mínimo uma contradição, que na verdade faz parte de um longo processo que envolve muitas frentes além da nossa própria consciência individual, como você bem coloca. A indústria, a oferta e o consumo precisam ser revolucionados. Obrigada por esse texto ♥️
Que texto necessário. Obrigada pela reflexão! Me chacoalhou um bocado aqui, tive fases vegetarianas e evito o consumo, mas eventualmente eu acabo comendo carne. Berlim é uma ótima cidade para veganos/vegetarianos, então facilita muito no dia-a-dia, mas ainda assim não virei totalmente a chave. Já eliminei a manteiga, não tomo leite e iogurte, compro cosméticos/produtos beleza veganos e tenho preferido vinho natural. É uma crescente que, provavelmente, vai acelerar depois de ler seu texto. Obrigada.