Plantei o boldo que veio do terreiro. Podei alecrim, lavanda e azaléia. Revolvi a terra úmida com as pontas dos dedos agradecendo, pedindo desculpas, sentindo esperança e medo misturados no substrato marrom. Terminei o ano com uma noite comum, comendo e bebendo, ouvindo música, regando um pé de saudade. Festejando essa vida de desterro em que a solidão é um espinho constante, mais ou menos protuberante, na sola de pé de quem sempre foi casa cheia e agora é só casa. Casa que já é muito.
Parei e pensei que alguns meses do ano tinham números neles: sete no setembro, oito no outubro, nove no novembro, dez no dezembro, e que na Etiópia os meses são treze. Brinquei da adedonha da minha infância, que depois se embestou e virou stop, e fui além das categorias usuais do jogo: entrou dengo, cheiro, remédio, planta, tudo sem contar pontos, só pra brincar. No último dia do ano, pela primeira vez, usamos a mesa de centro para montar um grande quebra-cabeças de dálmatas que tem cumprido o que prometeu: ginástica olímpica nos nossos neurônios. O café diário, apesar de bom, tem embolado meu estômago.
Sofro de uma saudade patológica, como uma nova amiga que fiz em Coimbra,
, que escreveu o que parece ser um sentimento comum entre muitos de nós: Transformar colegas em amigos, sentir falta de cumprimentar com abraços, sentir falta da cidade que me adoecia. Sinto falta dos banquetes de domingo na casa da minha prima Drica. De comer um pastel com laranjada na Chic’s enquanto leio na parede: nossos pastéis levam azeitonas com caroço.De almoçar em Santa Teresa com a Luisa, o José e o Tatá, ela dizendo que a cachaça que pedimos tinha o cheiro da penteadeira da sua avó Elza, aquele cheiro de madeira bem marcada que sobe quando se abre uma velha gaveta. (Eu e Luisa, aliás, colecionamos cheiros assim, não-convencionais: cheiro de espirro, de morte, de cabeça, de loja de fantasia...)
Saía de casa cheio de limões-cravo nessa altura do ano, a cidade uma sauna, e pedia nos bares que fizessem uma caipirinha com eles. Puxava da bolsa e dizia: “Seria possível fazer uma caipirinha com esses limões? É que sou louco por eles e não são fáceis de encontrar…” Achavam aquilo meio estranho, mas logo se derretiam e faziam. E eu me sentia tão livre fazendo aquilo. Seguir vivendo e escrevendo me ajuda a elaborar esse vácuo. Junto e misturado, um sentimento não identificado.
Li poucos livros no ano que passou. Artigos, capítulos, resenhas e livros específicos que serviam mais ao estudo que à alma, esses sim, sem dúvida foram muitos. Mas literatura mesmo, ficção, poesia, outros-assuntos-que-não-comida, foram poucos. Sinto que não posso me dar o luxo. Luxo de passar horas desapressadas lendo poemas, um atrás do outro, com uma tese para entregar. E não falo de poesia como uma coisa leve, um devaneio, mas como a matriz mais profunda do nosso pensamento, do que se é de verdade. Como deixar de ler livros difíceis e tão necessários como Terra, antologia afro-indígena, que uma amiga trouxe na mala do Brasil e tem morado na minha mesa de cabeceira?
No último dia do ano, passei horas lendo Clarice [Lispector], para quem sempre volto, desde a adolescência. Um lugar que parece empoeirado, mas não tem jeito, faz parte de mim. “Ela parada no quarto, como se tivessem extraído de seu corpo toda a alma.” O reflexo é praticamente imediato: as entranhas logo se remexem e os dedos coçam. Querem escrever. Nostálgico, o peito sobe à cabeça e teima em rabiscar qualquer coisa ultrapessoal, balancear o ano que passou, rever as fotos, sentir conquistas na boca, traçar novas metas, contando o ano em retrospecto. Não quis, mas acho que fiz.
Aqui, nesse texto, mas também de modo mais indireto: com as músicas que ouvi pelo ano, revisitando pela tarde do 31 as listas que embalaram as várias versões do que fui. As fases de pagode, hip-hop, pop e tecnobrega; de música cubana, bissau-guineense e cabo-verdiana. As fixações nas mesmas artistas — Jovelina, Leci, Alcione, RoRo —, meus discos favoritos do ano — D2, Xande canta Caetano, Elza, Mahmundi — e a completa ausência de outros que gosto tanto que pareço querer proteger e não ouço para não gastar.
Todo início de ano ou de grande ciclo assim, dentro ou fora da gente, e essa fé na vida que vai ser tudo novo, melhor, mais justo, e muitas vezes vai. Ninguém começa o ano animado para o que pode ser o pior da nossa existência. Confiamos que vai ser bom. E navegamos, mesmo com poucas certezas (como a de querer ver aquele pé de boldo crescer). No mural de vários dias, vejo o ponto de interrogação que engancha em mim o efeito de sua própria forma: o de um anzol. Que desce em curva, mas uma hora, some. E vira só mais um ponto (sem) final.
Chove fino lá fora. Pela página cento e trinta, Clarice, vidrada, me convida a terminar uma história esquisita que ela tinha começado e não sabia para onde levar. “Uma ave empalhada com as penas cor de rato”, imagine a audácia, adivinhe a delícia. Raio de sol aqui dentro. Sem fantasia, não há realidade que viva.
Me emocionei. Feliz novo ano, Mateus, e que tenha cheiro de praia de manhãzinha o que eu, particularmente, acho renovador.
É sempre tão bom te ler!
Essa coisa de buscar cheiros me lembrou quando minha mãe sentiu o cheiro de uma flor e disse que era o cheiro da cor roxa. Nunca mais esqueci, pq realmente depois que ela falou eu pude sentir o cheiro do roxo. Esqueci o nome da flor...