Conheci Josué Nanque por meio de um cartaz que colei no mural da Faculdade de Letras. Grudado com um adesivo Prato Feito, acenava para pessoas nascidas em qualquer parte do continente africano interessadas em compartilhar, em uma entrevista, o que quisessem sobre suas culturas alimentares. Josué foi o primeiro a me escrever e logo marcamos um café, num dia que acordou debaixo de chuva. Nosso plano era esse, mas, aparentemente, foi o de muito mais gente, varrendo a cafeteria da faculdade de qualquer chance de sossego. Entramos corredores adentro, numa das muitas mesas vazias de estudo. Sentamos.
Dois tímidos molhados de chuva, nenhum café no meio de nós, fomos conversando da vida, da profissão, de Portugal. Gostas daqui? Há quanto tempo chegou? E você?, íamos quebrando o gelo um do outro. Estudante de jornalismo em Coimbra, Josué tem 25 anos, e nasceu na cidade de Safim, nos arredores de Bissau, capital da Guiné-Bissau. Tem um irmão gêmeo, Joel, no meio de duas outras irmãs, Ana e Judite. Em todos corre o sangue da etnia Papel, uma das mais de trinta etnias do país, pertencimento que se mostrou protagônico porque veio na segunda linha de sua apresentação, no mesmo fôlego em que se diz quem se é. Como boa parte dos jovens de lá, Josué fala três línguas: o crioulo guineense, o português europeu e a língua Papel. Alguns elementos entre as línguas étnicas conseguimos entender. Meu companheiro de residência, por exemplo, é Balanta, e entendemos algumas coisas da língua do outro. Mas há algumas em que não se percebe nada.
Bastou chegar nas memórias da cozinha para que Josué se soltasse e eu relaxasse junto. Sorriu diferente. Fez uma cara de saudade. Começou a enumerar o que mais se comia, do que mais sentia falta da sua terra, para onde não volta há mais de um ano. O prato mais conhecido é o caldo de mancarra, um guisado de peixe, frango ou carne à base de pasta de amendoim [originalmente da mancarra, variedade local] diluída com água. Também o caldo de chabéu (ou tchebém), que pode ser igualmente de peixe, frango ou carne, cozidos dentro do “suco” da fruta do dendê pilado, antes de virar azeite.
Explicando o processo desses pratos ensinou-me a palavra mafé*, usada para designar o que o português do Brasil tem chamado tristemente de proteína, reduzindo a cultura alimentar ao nome frio de um nutriente. Contou que a maioria dos pratos tradicionais, como o caldo de mancarra ou de chabéu, por exemplo, podem ser feitos com diferentes mafés, sem a regra tão ocidental de versões únicas e oficiais. Salvo algumas exceções como a cafriela de galinha, prima mais ardida do nosso frango ensopado, a cozinha bissau-guineense, como muitas outras africanas*, se caracteriza mais pelo molho, pela preparação derramada sobre acompanhamentos neutros, do que pela carne em si.
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Essa falta de fixidez de um cardápio sempre aberto, de pontas que podem parecer soltas para a mentalidade cartesiana, diz respeito à forma como essa cultura alimentar se organiza, diferentemente da nossa. A carne não tem centralidade na cozinha da Guiné-Bissau; não é um pedaço de carne que define o prato, ditando o que virá ao redor dele. Diversidade, um leque colorido de possibilidades, é a chave de um modo bem mais abrangente de se perceber as coisas do mundo nas culturas africanas e afrodiaspóricas. E comer é uma das mais importantes delas.
Peixes vêm diariamente da pesca local, comprados de peixeiras nas feiras ou na beira do mar. Galinhas de perto, não dos aviários lotados do capitalismo industrial. Qualquer carne mais vermelha que isso pertence à comunidade, abatida e consumida em conjunto, ritualizada em festas regadas a música, dança, muita comida e bebida. Sempre partilhada, nunca só para si. O sacrifício é sacralizado, não ocultado, e como nas religiões afro-brasileiras, é o momento mais valoroso, o ápice de uma celebração importante. Encarado com respeito, honrado com o aproveitamento total do animal, inteiramente consumido. Separação mais brusca entre homens e animais é coisa branca, euro-cristã. Na maioria das culturas tradicionais africanas, come-se apenas o que está disponível, dependendo do que a vida quiser.
Nós pescamos no rio apenas o necessário porque confiamos no rio. Não temos medo do rio, sabemos que o rio vai dar peixe sempre. Por que coletamos apenas os frutos necessários? Porque sabemos que vai haver fruto sempre. Quando não for certo fruto, vai ser outro. Quando não for umbu, vai ser juá, vai ser carnaúba. (…) Como sabemos que tem de tudo para todos, não temos medo e não precisamos armazenar. Só precisa armazenar quem não confia, quem tem medo da natureza não fornecer, medo da natureza castigar.
— Antônio Bispo dos Santos, A terra dá, a terra quer
Como nos interiores rurais no Brasil, nas tabancas da Guiné-Bissau não há redes de supermercados, mas pequenas quitandas, mercados a céu aberto e feiras de todos os tamanhos. Em bancas de madeira ou grandes balaios trançados desfila a realeza vegetal que é base da alimentação local: mandioca, cará, quiabo, tomates, feijões e outras vagens, pimentas, os frutos quentes do dendezeiro... Frutas tropicais que são nossas velhas conhecidas — mangas, abacaxis, mamões, goiabas, cajus, tamarindos — e outras totalmente locais — veludo, farroba, fole, tambacumba, calabaceira (fruto do baobá), usadas principalmente na feitura de sucos. Vários tipos de mel, como o das flores da mangueira, do cajueiro e do mangrove, coletado a partir da floração dos manguezais. Em Bissau, o principal mercado toma quilômetros de extensão de uma via entrecortada por becos, o Mercado de Bandim, o maior e mais importante do país.
Come-se sempre em casa, quase nunca em restaurantes. Sempre em coletividade, de um prato só. O convívio é sempre em grupo. Praticamente tudo é acompanhado de arroz cozido. Comer o arroz cultivado lá é completamente diferente. É mais grosso. A maioria das famílias planta seu próprio arroz nas bolanhas, tipo de terreno alagado próprio para o cultivo desse grão. Minha família cultiva arroz, meu pai sempre foi agricultor. Eu mesmo já cultivei arroz, mas só para nós. Cultivamos e vendemos mandioca, inhame, pepino e feijão no Mercado. Arroz, nunca vendemos. Nessa hora, Josué disse uma coisa que ficou ressoando em mim: Só os que têm convicção que o fazem bem, decidem vender.
Isso porque a própria lógica do mercado difere da visão ocidental; a própria ideia de vender alimentos tem outro valor. Como em muitas outras culturas africanas, o mercado é tido como um lugar de circularidade, transformação, comunicação e sociabilidade. Um lugar de movimento e retorno, comunitário e relacional, não de competição, retenção e acúmulo. Não da mera troca de um produto por dinheiro. Troca-se mais, muito mais. Segundo a filosofia iorubá, é o mercado-ojá de Exu, feito de “laços de responsabilidade pelo trabalho das outras pessoas que produziram, produzem e produzirão aquilo do que eu preciso, mas não sou capaz de produzir em um determinado momento”. Todo esse princípio fica nítido quando Josué me diz que só quem tem convicção que cultiva um bom arroz decide vendê-lo.
Não é que não precisem vendê-lo, mas talvez não achem suficientemente bom a ponto de vender, de ganhar dinheiro com aquilo. Não é a venda pela venda, pelo lucro que é signo de poder e só. Essa é a mentalidade colonial, individual, essa sala todinha forrada de espelhos. Na percepção africana, porque se vive em grupo, há uma noção coletiva de cuidado e harmonia que paira no ar. Vender apenas aquilo que se considera o melhor que pode ser feito também envolve uma outra ordem de relação com a terra. Não baseada em expropriação e exploração, mas em comunhão, partilha, solidariedade e equilíbrio.
Onde nasci e fui criado, desde criança, íamos observando, achávamos um lugar bonito, criávamos uma relação, uma comunicação com o lugar. E marcávamos: “Vou fazer a minha casa aqui”. (…) Se uma pessoa passava na minha roça e pegava um fruto para comer, eu ficava feliz, era motivo de reconhecimento, como se eu tivesse recebido um troféu.
— Antônio Bispo dos Santos, A terra dá, a terra quer
Nas tabancas rurais, Josué me disse que não havia casa sem pesados pilões de chão. Mulheres modulando os fogareiros de lenha sempre à vista e operantes, suportando grandes panelas de alumínio. Colheres de pau retas e longas, com jeito de espátulas, mexendo as panelas e encaixadas na alça das tampas, ajudando a levantá-las para servir o prato sem queimar as mãos.
Quando perguntei se tinha alguma religião, curioso para saber do que conhecia sobre os rituais tradicionais, balde de água morna. Josué e sua família são, na verdade, evangélicos. E abriu um parêntesis: A esposa do meu pastor na Guiné, em ocasiões especiais, como o Natal, faz sempre o tchep bou djen, um prato típico do Senegal. Dá muito trabalho e poucas pessoas conseguem fazer. Trata-se de um arroz de peixe (mas também pode ser de frango, carneiro ou nada disso) cozido no caldo de legumes, tudo ricamente temperado, acompanhado de vegetais como berinjela, repolho e cenoura.
Morna porque lembrou que um tio mais distante ainda pratica a religião tradicional, hoje minoritária entre os guineenses. Seu próprio pai, antes de converter-se à Bíblia, também era praticante. Conheci algumas pessoas que têm ligações com esses rituais; normalmente são os mais velhos que praticam essas religiões. Do que sabia, contou que antes de beberem aguardente de cana ou vinho de palma derramavam um pouco no chão para que bebessem também os ancestrais. Acreditam, como outros povos politeístas, que deitar um trago de álcool na terra é uma forma de alimentar o divino. Nas oferendas, feitas dentro de meias cabaças para os irans, as divindades ligadas às forças da natureza, costumam estar juntos aguardente, tabaco e arroz.
Segundo ele, os agricultores fazem o mesmo para pedir e agradecer boas colheitas nas balobas, cabanas sagradas que guardam as imagens dos irans, normalmente instaladas sob a copa de árvores seculares, elas próprias consideradas sagradas. Dentro delas os balobeiros, homens ou mulheres mais velhos, sacerdotes da religião, incorporam entidades ancestrais atraídas pelo chocalho das cabaças agitadas ainda fechadas, com as sementes. Como nas giras de umbanda, por exemplo, as entidades mediam cura, aconselhamento e orientação aos membros da comunidade. Também são os balobeiros que conduzem as cerimônias, festas, rituais e sacrifícios, guardando e transmitindo a tradição oral. Ritos em que alimentação está sempre presente, junta e misturada com o cotidiano, sem uma separação racional.
Algumas famílias mais ligadas às suas ancestralidades ainda fazem o ritual de casamento tradicional dos Papéis, o que Josué tem visto cada vez menos. Os preceitos pedem que a noiva fique alguns dias reclusa, acompanhada apenas de uma mulher mais velha que a aconselha sobre essa nova fase da vida. Nos sete dias que precedem o casamento, a noiva deve esfregar azeite de dendê por todo o corpo; no dia da cerimônia, o casal deve comer kubamba com as mãos, prato típico dos casamentos tradicionais, um tipo denso de pirão com base de arroz cozido, farinha de milho, o fruto moído do baobá e azeite de dendê.
Em vez de véu e grinalda brancos como a pele do invasor, usam na cabeça um tecido feito lá, os panus di pinti [panos de pente], urdidos em teares manuais de madeira, em motivos geométricos simétricos e cores vibrantes, fundamentais em diversos rituais e oferendas. Josué me contou que, antigamente, a mudança de ciclo era oficializada depois da noiva ter a cabeça raspada. Hoje, em novos tempos, se não pulam o passo, cortam apenas uma mecha simbólica.
Não falamos do racismo, do subdesenvolvimento, dos estigmas, todos desvios impostos pela colonialidade. Para quê? Com tanta riqueza e abundância para conhecer? Tenho aprendido que o estudo das culturas africanas precisa passar por um esforço contínuo e consciente de positivar o território e os modos de vida desses povos postos à margem do mundo pela modernidade colonial. Principalmente ao tentar percebê-los despindo-se de uma lógica objetiva que é nossa, ocidental, acostumada a transformar sujeito em objeto.
Me interessa mais falar da parte boa. Daquilo que é trocado em saber, em sagrado, em tradição e no modo de ligar isso tudo com o que se come. Interessa-me reparar em dois sentidos: o de compreender com atenção, em profundidade, e o de reparação de um passado de violência e apagamentos. Já sabemos das chagas da escravidão. Precisamos saber além.
Saber que, de África para o Brasil, com a migração forçada, esses modos de vida vieram junto. Saber de tudo que foi mascarado, diminuído ou dizimado, parte de um esforço interminável em transformar o Brasil numa sucursal de Portugal. Aquilo que conhecemos hoje como agroecologia, a avesso da monocultura, por exemplo, foi sempre o jeito habitual dos povos tradicionais cuidarem de suas roças e hortas diversas, em respeito pela terra que lhes alimenta, para onde todos retornarão. Empreendedorismo? A arte emancipatória de mercar africana, eminentemente feminina, existia muito antes dos termos e estratégias em inglês. Se nas tabancas guineenses come-se no chão, em grandes bacias compartilhadas, moldando bolas com a mão e levando-as diretamente à boca, assim ainda se come o sertanejo capitão, massa amalgamada de farinha e feijão.
Afrobrasilidades são essas tecnologias de resistência contra o esforço de desterritorializar e desumanizar povos africanos no Brasil, um movimento dialético de combate a todos esses processos que são constantes e se atualizam. São respostas à desconexão do homem branco com a natureza, que ele inventou de dominar com anuência divina. Foi a Dra. Lourence Alves, recentemente empossada como professora do Departamento de Ciência dos Alimentos da Universidade Federal da Bahia, quem me transmitiu esses sentidos ao longo de vários de seus cursos transformadores que fiz. Não consigo mais perceber a cultura e a cozinha brasileira de outra forma. Mergulhado numa consciência inquestionável, aterradora, atrás de enxergar e mudar um Brasil que não se conhece. Ainda bem.
→ As passagens que entremeiam esse texto são do novíssimo livro de Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, intelectual quilombola, A terra dá, a terra quer, um livro para ter, ler e reler sempre. Transformei as nossas mentes em roças e joguei uma cuia de sementes
→ Assistam a série documental Da África aos EUA: Uma jornada gastronômica, baseada num livro da historiadora afro-americana Jessica B. Harris. Vibrei sobretudo com o primeiro episódio, que vai ao Benin, uma imersão nesse universo impressionante das feiras e mercados de rua africanos
→ Filhas do Vento para celebrar o legado da grande Léa Garcia, que na última semana virou ancestral
→ Apaixonado nas colagens da artista visual maranhense Gê Viana
→ O que sabemos sobre o Censo quilombola?
→ Ìyá Bernardete Pacífico, presente — na coluna de Luciana Brito no Nexo
*não falo do prato senegalês chamado mafé, um ensopado à base de amendoim muito parecido, aliás, ao caldo de mancarra da Guiné-Bissau
** embora haja semelhanças, não se pode generalizar, ensinou Oyèrónkẹ Oyěwùmí em A invenção das mulheres: “Não quero cair na armadilha comum de apagar uma multiplicidade de culturas africanas fazendo generalizações fáceis, processo que resulta em homogeneização injustificada”
Quanta riqueza num texto só. Obrigada 🙏🏾
Parabéns pra um texto tao tao interessante!!!