Copacabana
Registros do bairro que me criou pro mundo (e uma lista íntima de lugares onde ir)
Qualquer volta em Copacabana é um prato cheio para um cronista, qualquer artista ou bom observador. Minha última anotação escrita foi do dia em que vi uma senhora fazendo a cadeira de praia de bengala, batendo o metal no chão, a cor da pele morena-jambo denunciando que deve ser assim, passo a passo, alumínio no asfalto, que ela deve pegar sua prainha em todos os dias de sol. Na mesma tarde ouvi na fila do cartório que de todas as casas de câmbio discretas ou cintilantes do bairro, só na Fenician é que havia rúpias indianas. Ser de Copacabana é dessa sensação permanente de ser do mundo inteiro, e ao mesmo tempo, não ser de lugar algum.
De manhã, o peixe fresco que chega na Colônia dos Pescadores, no Posto 6. No cair da tarde, o cheiro preciso de maresia com milho verde, o céu esmaecido na orla, o sol indo se por em Ipanema. Copacabana salgada, lavada a água do mar, mijo e mate com limão. A bandeira vermelha da maré alta embolada no mastro. Vejo o Windsor Califórnia, hotel onde minha tia Cinthia se hospedava quando vinha de Fortaleza passar o fim do ano. Ligava o ar condicionado marrom-escuro, deitava na cama e espalhava a cabeleira longa e cacheada na colcha grossa para que eu mexesse, criança, trançando seus caracóis. Nas noites do calçadão prateado, as quadras de vôlei de praia são pontos de luz na imensidão, as bolas cruzando a rede e caindo sobre a areia úmida. Atrás, o fundo da noite salpicada de estrelas é uma tela escura feita de mar e céu, de um preto só, espelho de bolso da lua. Bairro adentro, o cheiro de pipoca doce caramelando o ar em qualquer porta de escola perto do horário da saída, para onde rumam os pipoqueiros e os fogareiros de seus carrinhos.
Apesar de ter vivido em Salvador, em Paris e na Tijuca, não tem jeito, foi em Copacabana onde passei os anos mais importantes da minha vida. O bairro onde nasci, me criei e me descobri; onde escolhi ficar quando pude morar sozinho, e porque fui me acostumando com a confusão, vendo a beleza tão particular guardada embaixo daquela névoa de caos. Nunca deixei de me encantar com meu bairro, mesmo nos cantos que já perderam seu brilho original e podem parecer decadentes para alguns. Cultivei o hábito de ir e vir dos lugares mirando as esquinas de olhos atentos e vidros abaixados, mesmo quando a pé. Levava meu cachorro ou ele me levava, passando e lembrando das coisas que vivi e das outras que foram surgindo pelo caminho. Percebendo a pobreza e a fome que sempre existiram, mas que nos últimos anos só se aprofundaram.
Cria de Copa, acompanhei o vai-e-vem das modas, as ondas negócios que abrem e fecham e os poucos que duraram e ficaram. Adorava o tempo das lojas de R$1,99, trocadas pelos sorvetes de iogurte, agora transmutadas em gigantes de cosméticos, xampus, bobes e esmaltes que se multiplicam por cada esquina. Lembro do cheiro da carne fria dos açougues que vi fechar e das lojas de biquínis, galerias, lavanderias, lojas de perucas e tinturarias que ainda resistem com o mesmo letreiro, o mesmo cheiro antigo de trinta anos atrás. Encharcado com a Drica, minha prima-irmã, debaixo de uma tempestade de verão, vi o primeiro Pinóquio, de 1940, reexibido no cinema Severiano Ribeiro de portas pantográficas, onde hoje funciona uma unidade envidraçada de uma academia de ginástica. Não lembraria dos tantos filmes no Roxy depois da casa da Soraya, amiga da minha mãe que morava em cima dele, no edifício Roxy, e eu já achava coisa de sonho morar num prédio siamês a um cinema. Lembro da florista da Travessa Angrense, sempre de girassol no cabelo; da Cerâmica São Jorge, loja funda de animais onde adorava entrar e ficar; da Massas Suprema, que me cuidou em tantas tardinhas com seus pasteis quadrados de uma mordida só, vendidos a granel, no saco de papel.
Ainda bem que a Flora Santa Clara não fechou. Que parou no tempo, no charme e na cerimônia das coisas, com a mesma mesinha para se escrever cartões e bilhetes, as flores frescas de sempre, as rosas colombianas e caras que parecem de veludo. Minha Copacabana do apego também é essa, a que ainda existe: está na Pensão Copa Rica, um sobrado onde se pede com ficha colorida PFs de verdade a preços ainda bem justos. Na banca de ervas da Mônica, na esquina da Bolívar com a Leopoldo Miguez, e nas frutas sempre vistosas do Ozias, na Santa Clara com a Barata Ribeiro. No teatro Brigitte Blair, numa ruela estreita da Miguel Lemos e n’A Cinta Moderna, um acontecimento cor-de-rosa na Dias da Rocha. Nos lugares que ainda resistem e não se deixaram virar lojas de departamento, megafarmácias, igrejas ou estacionamentos.
Lugares como a praça do Bairro Peixoto, onde nos sábados ia comprar orgânicos, e num sábado de sol, adotei o Maxixe. A praça Serzedelo Correia, conhecida como a Praça dos Paraíbas por ter sido frequentada pelos operários nordestinos que ali repousavam entre uma parede e outra, erguendo, nos anos 1960, a Copacabana caótica, plural e vanguardista que conhecemos hoje. Às segundas, quartas, sextas e domingos, a praça tem mais graça com o acarajé do Jay, baiano que reborda ali, na calçada, paramentado de panos com estampas africanas, a história daquele lugar de ser abrigo. Um cartaz preso nas grades da praça anuncia superlativo que seu preço é defazadíssimo, o que adoro e acho de uma simpatia sem tamanho. Todo domingo tem feira livre, e torço para que continue tendo. Acho que não mandam fechar uma praça de uma hora para a outra, né?
Semana passada, uma das minhas melhores amigas de infância me deu a notícia: “Nem sabe, achei o apartamento e vai ser em Copacabana! Na esquina da sua rua! Me manda uma dicas?”. Me peguei juntando tudo, lembrando de cada esquina, e quando resolvi pensar melhor, deu nesse texto. No fim das contas, decidi fazer um mapa. Uma lista da minha Copacabana, aberta a todo mundo que quiser seguir. Uma lista de amigo. De melhor amigo. Tem todas minhas memórias do bairro, sem forçação de barra ou coisas chiques que não fazem mais sentido. São lugares com alma, italianos com creme de leite, pizza para comer como quiser, bazares incontornáveis para qualquer urgência, os incontáveis árabes — Istambul, Baghdad, Amir, Baalbeck…
Copacabana acolhe a todo mundo, a todas as tribos e a quem nem tem tribo ainda ou talvez nunca vá ter. Não escolhe a quem. É bairro de judeus e sinagogas, clubes e bingos clandestinos, escolas de dança, cultos evangélicos e de outros cristãos. Todo mundo é bem-vindo: tarólogas, esteticistas, diplomatas, autodidatas, vassoureiros, famosos, anônimos, biólogos, ricaços, favelados, tradutores, cerimonialistas, cozinheiras, camelôs, juízas, catadores de latinhas. Lugar de profissionais do sexo, do café, da hotelaria de luxo e do pensionato empoeirado; terreno de intelectuais de esquerda e suas casas cheias de livros, mas também de muitas prateleiras vazias, reduto inflamado de uma fatia significativa do mais torpe bolsonarismo. Copacabana, em resumo de imagem e som, está inteira no brilhante Edifício Master, documentário de Eduardo Coutinho. E é por culpa de Copacabana que essa newsletter chama-se Prato Feito, afinal, como passar ileso às tantas placas deles espalhadas pelo bairro? Todo mundo no fundo quer, mas a verdade é que não é fácil ser de lá. Dessa selva de pedra ofegante, com cheiro de mar. Minha Copacabana. Um dia eu ainda vou voltar.
Já mandei lhe entregar o mar
Que você viu
Que você pediu pra eu dar
Outro dia em Copacabana
Talvez leve uma semana pra chegarTalvez entreguem amanhã de manhã
Manhã bem seda tecida de sol
Lençol de seda dourada
Envolvendo a madrugada toda azul(…)
Quando eu fui encomendar o mar
O anjo riu
Me pediu pra aguardar
Muita gente quer Copacabana
Talvez leve uma semana pra chegar
Estarei em Copacabana por dois dias, seu texto me deu ainda mais vontade de curtir o final de semana.
Que precioso!
Que delícia de texto! Eu já andava com muita vontade de revisitar o Rio, agora aumentou ainda mais. Aliás, eu amo Copacabana. <3