Cortando qualquer estrada rural, alimento o sonho idílico de um urbanóide cansado do asfalto, como eu: o de morar num pedaço de terra, pés descalços na grama, uma rede amarrada entre duas árvores, um canto onde plantar hortaliças e vista para as montanhas. E como se já estivesse perto de ser real, pulo direto ao passo mais lúdico e pergunto ao meu marido: e de que cor você gostaria que nossa casa fosse pintada?
Depois de terracotas e rosas antigos, histórias de telhados e janelas combinadas, todas as cores que iam surgindo eram de comer. Já reparou que se sairmos da caixa de lápis de cor, muito da nossa paleta parte do que se come? Lembro logo da minha mãe enchendo a boca para dizer goiaba ao falar de qualquer coisa que se situe naquela curva do rosa, como se estivesse diante da fruta bem madura.
Sinto a ênfase que escorre de sua fala quando a vejo descrever um par de olhos cor de mel ou uma boca de batom fulminantemente cereja. Mestra dos tons e entretons, parece que a vejo falando de uma cortina mostarda, uma sandália beterraba, um carro berinjela, uma pétala uva, e assim por diante. Seu jeito de descrever o pigmento do feijão ideal acende logo no ar o cheiro do alho e o som da fervura — é um feijão grosso, voluptuoso, chocolate.
Aprendi com ela, tão expressiva, a olhar as coisas assim, de perto, sempre atento àquilo que se come, já que nossa vida sempre se passou na cozinha. Peguei dela essa fluência que me faz olhar seu anel de acrílico e pensar de bate-pronto que ele tem cor de gema. Gosto de ler a calma de uma parede pistache, a inocência de um abajur salmão, a gravidade de um vestido ameixa, o rosa exato do jambo que só ele próprio, com seu miolo tão alvo, dá conta de nomear.
Irmão de um grafiteiro daltônico, cor é coisa séria para mim, sempre foi. Desde criança, tive a responsabilidade de dizer para ele se o azul que ele arriscava era celeste ou anil, o verde realmente fresco e qual vermelho tinha cor de sangue. Quisesse confundi-lo, coisa que nunca fiz, indicaria uma cor errada, e sua onça sairia diferente do que a mata nativa pintara.
Na adolescência, sempre ligado ao universo feminino, me fixei às cores dos esmaltes que minhas amigas usavam. A mistura preferida da Luciana, grande amiga da vida, já foi um vinho profundo de base marrom, resultado da junção de camadas Carmim com Licor. De sua irmã, a Fabiana Fafá, o escuríssimo Carbono, um chumbo elegante de brilho prata-azulado. Na minha última ida ao Rio, peregrinei pelas farmácias de Copacabana atrás de um certo azul que usa a Madá, personagem da novela que minha mãe acompanha. Não fosse o azul a cor mais rara entre aquilo que se come, tenho certeza que ela teria uma mordida onde mirar.
Adolescente, tive uma cor favorita. A mais viva possível: laranja. Por causa dela e de outras afinidades, selei uma amizade que vivo até hoje, com uma amiga que de tão vidrada nessa cor ganhou um apelido que ainda resiste: Sukita. O laranja do qual já enjoamos de tanto gastá-lo é aquele que grita, o mesmo que vestem os garis da Comlurb, e parece que é mais quente se o chamarmos como muitos chamam, cor de abóbora. A comida pauta a vida, e pauta com tanta afinco, que esquecemos o próprio laranja, que antes de ser cor, era fruta.
Maravilhoso! (Eu também penso em pessoas e sentimentos haha)
maravilhoso demais, ai!