Mais passa o tempo, mais sigo convicto que uma das belezas mais sinceras da vida é dizer que não se sabe de alguma coisa. Tenho e renovo essa opinião por ter vivido alguns anos entalado com o conflito de ter que saber sobre qualquer coisa, de bate-pronto. Parte de um meio profissional vaidoso e elitista, o do jornalismo de gastronomia, tão estranhamente associado ao luxo, onde vence quem é o mais interessante, eloquente e viajado da mesa, quem fica calado é lido como quem não tem algo a dizer. “Quem não é visto não é lembrado” , eu ouvia, mas preferia me apegar a gente experiente que dizia: “Quem fala muito dá bom dia ao cavalo, e quem não sabe para onde vai, qualquer vento leva”. A cada vez que insistia em proferir um expresso não sei diante de qualquer pergunta da vida, me sentia um quilo mais leve. Abria espaço para a franqueza, a humanidade, a fragilidade que todo mundo carrega, mas nem todo mundo consegue engolir. Seria eu mesmo, cheio de lacunas, cheio de margaridas no lugar delas.
Hoje em dia, tenho mais medo de deixar de errar do que vontade de acertar sempre. O exercício semanal da newsletter é uma bela forma de colocar isso em prática, mas não quer dizer que seja fácil. Quando percebo um erro depois de já ter publicado um texto, ainda sinto um frio culpado na espinha. O olho vicia, e mesmo que ler em outro suporte melhore (sair do computador para o celular, por exemplo), sempre há coisinhas que passam. Meu marido (meu revisor oficial) e o pente fino de um corretor gramatical muito me ajudam, mas não são à prova de erros. Ninguém é. Uma vez fiquei tão empolgado com uma foto de acerolas vermelhas que achei para ilustrar meu texto sobre as eleições presidenciais que resolvi chamá-las de pitangas por instinto, num impulso estilístico. Achei que soava bem e quando bati os olhos tive certeza de que eram pitangas, não acerolas, tão certo que nem precisei confirmar com alguém que tivesse crescido perto de uma pitangueira. Quando recusei comprar uma escrivaninha que achava ter pertencido a um quartel do exército, descobri pelo comentário de uma leitora que quartel também podia significar um quarto de século, mais que uma instalação militar. Não quero que soe descuido. Tempos e terapias depois, entendi que esse espaço era tão pessoal e humano que deveria ter, também, espaço para o erro, ainda que o jornalismo não deva espalhar desinformação. Ainda que, nesse espaço, jornalismo e literatura por vezes borrem suas margens e virem uma coisa só.
Fiquei meio cismado quando cheguei na Universidade de Coimbra porque não sabia que abertura iria encontrar nesse aspecto. Tinha todo o peso de ser a segunda universidade mais antiga do mundo ocidental, cheia de predicados, etiquetas e protocolos. Saberia de menos dentro de um universo que sabe demais? Haveria margem para errar? Me perguntava como seriam as aulas, o humor das professoras, o clima de cada coisa. Amanhã, passou voando, o semestre acaba. E depois desses meses de mergulhos semanais, dias inteiros de conferências, colóquios, trabalhos e provas, posso dizer que mesmo dentro de uma instituição tradicional, o Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, me sinto completamente à vontade. Sinto o pacto tácito que gostaria de ter encontrado: o da transmissão do conhecimento em conjunto, com profundidade e leveza, sem estigmas de medo ou mestres herméticos e inatingíveis.
Sei que o modo como me sinto é o reflexo da experiência do meu corpo branco naquele lugar. Sou mais um entre os alunos e professores brancos do meu curso, e apesar de muitos alunos afro-portugueses e africanos de países lusofônicos como Cabo Verde, Angola e Moçambique nos corredores da Faculdade de Letras, onde tenho minhas aulas, professores negros ainda são minoria por aquelas salas. Apesar dessa aspereza de grande importância, e apesar do ambiente sisudo, da madeira escura e dos corredores fundos, já na primeira aula, doutora Carmen Soares, que ensina Sabores do Passado: a cozinha grega e romana, quebrou o gelo de um jeito tão simples que me relaxou os ombros: “Sou professora, mas também sou uma pessoa”. “Não há nenhuma regra que não possa ser revista e ninguém está aqui para assustar ninguém”, continuou, acolhendo nossas caras inconclusas enquanto apresentava os prazos e bibliografias para o ciclo de estudos que começava.
Principiou por assumir que não era tecnológica: “Vamos ver se me entendo com este animal", rindo de canto de boca, tateando o computador, ligado a um projetor. Loura e esguia, cabelo solto acima dos ombros ou clicado por uma presilha discreta, anda sempre de vestidos retos na altura dos joelhos, salto baixo e casacão, colar de pérolas e um anel de pedra. Quando passou o primeiro trabalho, falou do caráter de permanência da escrita naquele ambiente específico citando um provérbio latino que dizia que as palavras voavam enquanto a escrita permanecia (verba volant, scripta manent), recomendando que “quem está a estudar e trabalhar tem que articular a vidinha”. Já disse mais de uma vez que, no fundo, éramos todos alunos uns dos outros.
Nas salas preenchidas de livros do chão ao teto, doutora Carmen dá cada aula olhando no fundo dos olhos de cada um de nós, alunos, percorrendo cada rosto presente, explicando com minúcia: “Temos que entender o porquê das coisas, meus caros”. Depois das falas cheias de informação, nos salva: “O que é importante reter disso tudo?”, e pede que olhemos nossas pesquisas com cautela, tendo cuidado para não generalizar ou desenhar sentidos onde não há. “Não podemos ler todas as épocas com o olhos de hoje, para tudo há um contexto histórico.” Quando o assunto foi galinha à cabidela, preparada com sangue, prato que adora, amarrou com laço: “Como comida é cultura, gostamos daquilo que nossa cultura nos ensinou a gostar”. Começa e termina qualquer assunto com carinho materno — “Meus lindos…” — e apaixona quem vive de comer e escrever sobre comida, como eu, quando fala das suas investigações sobre o pão, a base da alimentação na antiguidade clássica, contando que sua família tinha uma padaria, e sobre a canja de galinha, comida de convalescência, para “doentes e paridas”, que deriva de um caldo oriental com arroz muito cozido. “Aqui em Portugal agora faz-se com massinha, uma desgraça, somos uns vendidos.”
Apesar de catedrática, pós-doutora, coordenadora de obras, cursos, departamentos e publicações, apesar de fluente em grego, tradutora de títulos clássicos da literatura antiga, doutora Carmen não tem qualquer constrangimento em dizer um sonoro eu não sei. “Não sou especialista nisso, não posso responder”, rebate sem grilos quando perguntamos sobre algo que ainda não tenha sido seu objeto de estudo, em vez de arriscar em dizer qualquer coisa inconsistente. “Batata não é um tema que me aprofundei porque não é um assunto prioritário”, “talvez exista um estudo sobre isto, mas desconheço”. Acostumada a destrinchar as etimologias das palavras grego e latim, muitas vezes adianta: esta, não sei. “Sei algumas, mas não todas, também não sou um dicionário, não é?” Tranquila e autoconfiante, livra-se do peso penoso e irreal que deve ser saber demais.
Faz falta reconhecer o quanto nos tem valido a aceitação tranquila da incerteza. O mundo parece ser feito de regras. Tudo indica que essas regras foram testadas e comprovadas como imutáveis e universais. Mas o mundo é feito também de uma parcela de caos, de contingência e de acaso. Ensinaram-nos a ter medo desse caos. (…) A incerteza é tida como um talho no conhecimento. É uma carência geradora de medo. a incerteza é um abraço que damos ao futuro. A incerteza e uma ponte entre o que somos e os outros que seremos. (…) Precisamos de uma reviravolta na narrativa da nossa própria espécie.
— Mia Couto
No buxixo que antecedia uma conferência sobre alimentação no mundo cristão, falávamos amenidades enquanto ela tentava lembrar o nome de um ator brasileiro que “gostava imenso”. Puxava alguém cult na memória, alguém que na minha ideia seria compatível com seu posto tão distinto de intelectual, mas quando lembrou-se quem era —Leandro Hassum, ator de comédia bem popularesca — só me fez admirá-la ainda mais ao provar que equilíbrio é mesmo algo de muito precioso na vida, e que ninguém é cem por cento isso ou aquilo. Ensinou-nos, desse jeito autêntico, que tudo com pão e paixão é melhor. Que devemos ser originais em nossas investigações, fazendo algo que gostamos e que ainda não está feito. Feminista, encorajou que a Maira, outra brasileira da nossa turma diminuta, fizesse a prova escrita amamentando sua filha Aurora, que raiou há menos de um mês, depois de tantas aulas onde quem chegava primeiro era o barrigão. No fim da prova, sem um chorinho sequer da bebê tão miúda, Carmen disse satisfeita que ficou feliz em ver aquela cena, e que no tempo do seu mestrado isso não aconteceria, “mas que bom que os tempos evoluem”.
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Doutora Maria José Azevedo Santos disse que sentado só falava o saber: “Gosto de ensinar em pé”, circulando pela sala com desenvoltura, batendo o salto alto no chão de taco, gesticulando com as mãos e a expressão. Medievalista, especializada em paleografia, a história da escrita antiga, sempre abre parêntesis para contar causos porque diz que as aulas não precisam ser pesadas, tem-se que rir. Contou que em seu tempo de aluna, os anos 1970, estudantes não davam um pio e não podiam chegar sequer um minuto atrasados. Foi ela quem teve a ideia do curso em que estamos, Alimentação: Fontes, Cultura e Sociedade, e que não foi bem recebido de primeira porque consideravam este um assunto menor. Ela explicava que não: “O mundo da escrita é muito bonito, mas é a alimentação que é vital ao homem. Ler e escrever, não. Posso viver 80 anos sem ler e escrever, mas não sem comer, não é?”
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