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Lembro daquela aula de ciências que dizia ser a pele o maior órgão do nosso corpo. Corpo de onde tudo parte. Que se espatifa e se reconstrói e é tela virgem das memórias mais lindas e mais doloridas. Memórias que se inscrevem nele, ainda que unicamente nele. Fiquei pensando que é ele próprio que nos reveste, o corpo, a pele entre o que somos e o que o resto do mundo é. Desde que fiz um dia d’Escriterapia, uma imersão escrita-psicanálise-sexualidade, com
e , uma das flechas que me acertou foi essa. Num exercício coletivo rabiscado em papel, uma delas vergou o arco e disse: “Perceba como está o seu corpo agora, enquanto você escreve”.Me senti observado, mas era eu mesmo quem me olhava do outro lado do vidro. Eu, sentado de pernas cruzadas no tapete da sala, como quase sempre fico, mesmo em cadeiras de escritório. Como se só assim eu aterrasse e me entendesse para poder começar a deixar o corpo dizer. As pernas inconscientemente cruzadas, talvez para que não pareça trabalho. Às vezes tão cruzadas, por tanto tempo, que os pés ficam dormentes. Então é preciso desatá-las e deixar o sangue fluir.
Meu corpo escreve em vários lugares e, também, frequentemente, para de escrever e lê. Sente coçar e coça. Lê e escreve em simultâneo. Ou só lê, esperando que uma palavra que outro corpo escreveu troveje no meu e me ajude a colocar alguma coisa pra fora. Que lê e relê e como bem disse Clarice, tem náusea em se reler pouco tempo depois. Que lixa as unhas e perde frequentemente o foco. (Aliás, você conhece lelê, um doce de tabuleiro, afro-brasileiro, divino?) Escrever, esse trabalho estranho. Esse trabalho grande. Esse trabalho invisível. Esse trabalho.
A ponta voltou a enganchar no primeiro texto da
, newsletter da , que saiu mês passado, quando voltei a pensar sobre corpo e escrita. Renata escreve, e vejam só que bonito é, que “grande parte da escrita acontece com o corpo e com a emoção”. Escreve que o ato da escrita não precisa ser só intelectual e diz algo que pode parecer óbvio, mas foi revelador no dia em que li: o ato da escrita é complexo, “mas também simples e natural”. Estevans disse algo parecido: “Eu não sou uma intelectual, escrevo com o corpo”. Tão verdade o quanto escrever pode, para a mesma pessoa, ser um caos e num dia ser duro, custoso ou protocolar, e noutro dia ser mole, desenrolado e emocionado. Mente e corpo conjugadinhos, dias mais, dias menos. Escrever, como comer, afinal, não é uma coisa só.Tenho desejado, para mim e para os outros, essa escrita corporal. Vira e mexe, enquanto leio alguém que admiro, flagro um pensamento que fica ali se pensando: como é que essa pessoa escreve? Será que ela fica corcunda sobre a escrivaninha? Espreme os olhos à meia luz quando atravessa a noite na escrita? Apoia a caneta nas têmporas em caso de dúvida? Vai ver que, quando a ideia voa e foge, esse alguém que admiro tamborila os dedos na mesa à espera de que a ideia volte. Ele também assovia para atrair de volta a ideia? Será que levanta, entre as páginas, para se espreguiçar? Lembra de alongar os dedos, rotacionar os punhos, dar descanso às mãos digitadeiras?
— Gabrielle Estevans, em sua
Sigo no fio da navalha entre gostar de escrever e o que raios isso pode querer significar. Entre o que é paixão ou profissão. Ofício, destino ou só ou armadilha açucarada do capitalismo, mesmo. Escrita que pode ser prazer, mas para mim é, antes de tudo, trabalho. E gostar do que se faz não deveria significar que se deva fazer tanto. Que machuque e tire o sono e às vezes faça chorar. Ainda assim, escrevo. Deixo o texto esfriar (ou marinar, como disse a brilhante
em sua newsletter que tanto gosto). Mesmo sem saber se alguém vai ler ou o que vão achar.Passei os últimos meses tão concentrado em pôr de pé minha dissertação de mestrado que parecia não caber mais nenhuma palavra que não fosse dela. Quando, num espasmo, meu corpo queria se distrair e escrever outra coisa, eu encurtava as rédeas e pedia que voltasse mais tarde. Fazia esforço para conseguir descansar mas dava tudo o que o corpo pedia, menos descanso. Descanso que não é televisão, celular, cinema ou vinho branco. Descanso vazio: o tempo, o vento, o silêncio, a espera. O céu escuro até que uma estrela cadente resolva cair. Um meteoro azul que cruzou o céu de Portugal e só vi o clarão de relance porque tinha os olhos grudados nas telas. Entendem como não é só olhar o mar, mas se misturar nele? O corpo solto boiando na água até lembrar de levantar. A mente aberta com todas as abas fechadas. Já falei de tempo?
— Quem me leva meus fantasmas, de Pedro Abrunhosa, na voz de Bethânia
E sobre um corpo que escreve, apesar de poder ser tanta coisa, só posso falar do meu. Meu corpo sem tatuagens. Branco por fora e vermelho por dentro. Corpo que constantemente dói por uma coluna frágil. Corpo que já viveu tantas coisas comigo. Que é minha própria substância, me acompanha, me conhece, te desconhece e se excita. Meu corpo, veias e artérias, ossos e músculos. Só meu.
Então espreguiço e me abro para escrever um texto novo. E assim, como quem não quer nada, vem aquele medo amarelo de não ter o que dizer. O frio na barriga que antecede o trecho, a corda bamba de quem tem a certeza que vai cair. Escrever sobre o quê? Os banhos de realidade do
, o Rio Grande do Sul, as chacinas nas favelas, as guerras todas, sommelier de tragédias e a sensação de que qualquer outra palavra é completamente vazia. A impressão que parece um decreto pro peito: não conseguir arranhar uma palavra sequer. Ainda assim, insisto. Escrevo.
me senti tão tocada com seu texto. e "devaniando" com a ideia dele, como pode as palavras nos fazerem sentir toque, acolhimento, abraço e carinho?
muitas vezes é o que sinto lendo, a mim ou o outro, e escrevendo.
tenho a mania de escrever encolhida, quase que me abraçando mesmo. aprecio escrever ao ar livre, cercada de natureza. gosto de cadernos de capa dura que me permitem colocar sobre os joelhos.
me sinto marinando ideias, e seu texto acaba de contribuir para o tempero desse fluído que me percorre.
<3