Nos domingos pré-internet, folheava a revista que saía encartada no recheio d’O Globo só para encontrar a coluna da Martha Medeiros. Achava aquilo uma coisa deliciosa de ler. Antes disso, criança ainda, brincava de dicionário: apontava aleatoriamente uma palavra para adivinhar o que queria dizer. Devo ter entrado na faculdade de jornalismo porque, no fundo, queria seguir assim, mexendo com elas. Contando histórias de pessoas comuns e alguns ídolos, rodando o mundo e escrevendo crônicas. Não para morar em Brasília, cobrir grandes acontecimentos da nação ou redigir obituários de gaveta nos tempos livres da redação (nada contra, até tenho amigos que fazem). Deve ser por isso, quase uma década depois de formado, que me sinto satisfeito aqui, escrevendo assim, na primeiro pessoa. Para vocês, pessoas que me lêem.
A escrita era algo de instrumental para mim, feita do jeito técnico que aprendi na Escola de Comunicação. Com o tempo e o gosto pelos livros, foi entrando no sangue. Pedindo para ter personalidade e eu deixando. Ousando onde o trabalho me permitisse, ensaiando escrever mais solto para mim e pros meus. Fui afiando as palavras, experimentando outros jeitos e gostando, tudo sem regra, mistureba de gêneros. Ainda assim, sempre que recebo um elogio ao modo como escrevo fico encabulado e aliviado, mais que lisonjeado. Não escrevo do jeito que gostaria, e pressinto que talvez essa sensação nunca passe, essa poltrona confortável nunca chegue. Quem liga? Me importa é chegar nos outros, mais do que ser qualquer coisa só por mim.
Quando resolvi criar uma newsletter e passei a assinar algumas, não imaginei a quantidade de textos que veria sobre o processo da própria escrita. Acho que passei a gostar de ler coisas assim porque fui entendendo como escrever era um verbo realmente aberto. Muitos relatos conversam comigo, outros passam longe, e acho tudo isso uma beleza. Mostram como, por mais que se tente encaixar esse ofício em cercadinhos, por mais que cursos milagrosos prometam a famosa destravada, a verdade é o tanto que cada processo é, mesmo, muito individual. São coisas distintas escrever ensaios, crônicas, textos acadêmicos ou literários, mas não só. Mais importante é que não há um jeito certo ou ideal de escrever. Para uns, exige bunda em qualquer cadeira e um prazo no pescoço. Para outros, todo um ritual.
Encaro o exercício da escrita como uma prática plural. Espalho, distribuo, salpico e divido essa prática das palavras durante meus dias, de modo que ela sempre esteja presente. Gosto de diversificar os meios em que escrevo: o caderno, o papel solto, as notas de celular, os arquivos no computador, os textos das redes sociais… São camadas de palavras sobre mim mesma, como fossem o tecido de minha pele, cada uma com sua função própria e também com a função principal: produzir contorno ao corpo que se desloca e que produz mundos.
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nessa edição da
Não me desfaço totalmente da ideia de inspiração, por exemplo, recusada por muita gente que escreve. Há quem a veja com impaciência e pense que se dependesse de inspiração para escrever, livro nenhum saía. Entendo esse ponto, porque escrever é mesmo equação complexa entre disciplina, perfeccionismo e procrastinação. Habilidade e sensibilidade, caos e solidão, um lavando a mão do outro. Mas no meu caso, reconheço, sim, um colorido diferente entre os dias. Tá, podemos dar outros nomes que não inspiração: ânimo, atenção, abertura de caminhos, energia, empolgação, vitalidade, pré-disposição. Tempo. Parece que o corpo engrena uma marcha muito própria, meio em suspensão, deixando as palavras passarem por ele. E elas passam.
Há dias ótimos, tagarelas, hiperprodutivos. Dias medianos, sem grandes emoções, e dias impossíveis, em que a fonte seca e a palavra trava. Quando tô embolado com alguma notícia ruim, o corpo ou a cabeça querendo ficar de molho, não há método que drible o medo. O texto sai a passos lentos e custosos, sai sem graça ou simplesmente não sai. Às vezes não gosto de nada que escrevo e questiono se não deveria ter escolhido outro meio de ganhar a vida. Sensível demais. No dia seguinte, uma noite dormida depois, o texto flui e a tensão flutua. Talvez isso aconteça porque aqui meu chefe sou eu, e vocês, uns queridos. Além de tudo, a newsletter tem um jeito que permite um pedido de desculpas e uns domingos em branco, sem ressentimentos. A liberdade autoriza a plenura e também o vazio.
Tudo o que escrevo aqui sai de forma completamente distinta: há rascunhos que vou alimentando com referências, artigos, imagens e pensamentos até que resolva colocar as mãos na massa, dedicado a terminá-lo, o que pode ser no dia ou no mês seguinte. Alguns textos, sobretudo os mais pessoais como o sobre a morte da minha avó, saem de uma vez só, de uma rajada abundante, às vezes chorando junto, de soluçar. Edições paridas de uma palavra, batidas no rastro de uma hora de trem, e aquelas que vão e voltam de viagens inteiras e permanecem verdes, azedas, difíceis de cravar os dentes.
não preciso de nenhum arco-íris inspirador pra escrever, apenas de boletos. quem ganha a vida com isso não pode depender de um dia ensolarado ou da possibilidade de um sonho maravilhoso na noite anterior. (…) ainda que eu não romantize a escrita e a valorize como prática, ela tem o poder de revelar e dar existência a coisas, levar a lugares. um lance meio ficar odara. era desse estado de graça que eu sentia falta até que comecei a escrever aqui. amo escrever e ser levada por algo que não controlo e que ao mesmo tempo estava dentro de mim.
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nessa edição da
Não é como preencher uma planilha, em que só basta foco, mesmo que capenga. Escrever qualquer coisa mexe com muito mais gavetas nossas. É esqueleto, estrutura e sentido, mas é também ritmo, poesia, estilo, sonoridade, frufrus ou cortes secos. E filtro, muito filtro para que nada disso se perca ou se sobreponha ao principal: entregar uma mensagem, se fazer entender, a carne vermelha do texto. Pelo menos para mim. Ou para escrever esparramado assim.
No mestrado, tenho lidado com esse embate: até onde me espalhar? Muito pela noção de que a escrita acadêmica precisa ser sempre neutra, objetiva e universal. Um tom asséptico onde nem adjetivos ou advérbios têm muita vez e é o projeto investigativo quem assume vida própria. Distante e em tamanho 12, o “eu” vira “este trabalho”. Mas se cada um fala de um lugar, não há voz que fale por todos. Comendo pelas beiradas, vou buscando entornar proximidade, experiência, corporeidade, impressão digital nesse texto, o que não significa perder o rigor. Universalizar a margem, levando-a para o meio do centro. Ainda bem que consigo dar vazão aqui / Ainda bem que vou tentar infiltrar qualquer coisa de mim ali, penso em mão dupla.
Assisti mais de uma vez (e recomendo fortemente) o Roda Viva com Ana Maria Gonçalves, autora de Um Defeito de Cor, que revelou tê-lo reescrito por 19 vezes do zero até chegar na versão final. Um livro monumental no tamanho — mais de mil páginas — e no que significa. Visual, a escritora encheu as paredes de sua sala de estar de folhas A4 e rascunhou à mão a espinha dorsal do romance. Disse que soube a hora certa de parar quando notou estar começando a piorar a história, em vez de melhorar. Três anos depois da primeira versão.
Mas, o medo ainda me acompanha. A timidez. A insegurança. No texto, sinto não estar inteligente o suficiente. Depois acho incoerente, como uma colcha de retalhos. Mesmo que colegas já tenham lido trechos e apoiado. Tem dias bons também, releio e tenho orgulho de mim. Uma montanha russa de sentimentos da qual não se pede para descer.
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nessa edição da
A hora mais libertadora da escrita, para mim, é essa de cortar o texto sem pena, como quem muda um corte antigo de cabelo que já não nos serve mais. Se rolar um apego, colo o trecho num lugar separado, onde sei que posso voltar e pegar. Na maioria dos casos, depois do texto pronto, aquilo que acreditava inapagável já não parece tão importante assim. É o que funciona aqui, mas talvez o melhor conselho de escrita seja: teste todos, mas não se prenda em conselhos. Ache seu jeito, seu ritmo, seus motivos pra escrever. Não importa se é para explicar um sentimento, para guardar como um diário íntimo ou para pagar as contas. O importante é sempre começar, e o caminho costuma dar conta de arrumar o resto. Importa é escrever.
Meia-noite e blau, fritando na cama. A cabeça um fogaréu. Deito sobre o travesseiro e as frases pipocam como vagalumes insistentes voando no quarto escuro. Como aquele carapanã que vem zumbir dentro do nosso ouvido justo quando a gente tá pegando no sono. As palavras vão me pedindo passagem. Ideias soltas. Coisas juntas. Obedeço. Vou anotando na cabeça, mas e o medo de não lembrar amanhã? Preciso acordar cedo. Não demora, cedo. Estico a mão e pego o celular. Um par de frases da Paula Gicovate volta e se apresenta: O que importa é que eu me lembre que tudo o que eu posso fazer é escrever. Não importa como, tudo o que eu posso fazer é escrever.
Tô com abstinência das edições mensais com recomendações, lendo e vendo coisas que valem muito a pena serem divididas. Então, de vez em quando, vou deixar aqui, tá bem?
Estou lendo O samba segundo as Ialodês: mulheres negras e cultura midiática, adaptado da tese de doutorado de Jurema Werneck, um dos principais referenciais teóricos da minha dissertação de mestrado
Tenho dificuldade com podcasts de entrevista porque, na maioria deles, o entrevistador interrompe demais o entrevistado para falar de si. Mesmo assim, vale assistir esse episódio do Sirva-se com a Danni Camilo, musa da minha vida e da restauração no Rio (e que já me concedeu essa bela e longa entrevista aqui para a news). Cheio de boas reflexões sobre o mercado de gastronomia e hospitalidade
Também vale muito tirar um tempo para escutar Gilberto Gil e Conceição Evaristo no Mano a Mano
Ando me divertindo com Caravana das Drags, reality do Prime Video apresentado por ninguém menos que Xuxa, toda montada
Semana que vem vou fazer esse curso online, Plantas da negritude e cozinha afro-brasileira, ministrado pela Renata Sirimarco, bióloga estudiosa dos vegetais afrodiaspóricos
Que delícia de texto e que momento mais providencial lê-lo. Obrigada ❤️
Uau, Mateus. Que precioso esse texto.