Milho quando salta em pipoca me dá um negócio. Uma alegria discreta, uma licença de festa. Um ar súbito de sábado. Um frio na barriga de filme. Começar o ano com pipoca deve ser qualquer coisa de esperançoso, renovador, revelador, pensei, ao escrever esse texto. E quis fazê-lo em tópicos, em fragmentos de pensamento, inspirado no que faz
em sua ótima . Faça uma pipoca — é fácil, barata, nutritiva, nativa, vegetal, ancestral, milenar — e aproveite.1. Estourar/arrebentar/fazer
Na minha vida sempre se fez pipoca. Mas a verdade é que os verbos de comando para a feitura da pipoca na panela mudam conforme a cultura e os trejeitos do território. A vó Tita, avó do meu marido e um pouco minha, fala em arrebentar pipoca com a maior naturalidade do mundo. E eu acho a coisa mais linda do mundo.
2. Planta-palavra
Do tupi, porque milho é e sempre foi alimento americano de domínio indígena, pi'poka quer dizer "pele pocada". Pira = pele, o que em Belém minha família usa para falar de um machucado na pele; poka = arrebentar, espocar, pocar, como se diz em muitos outros cantos que não só o Pará. Fixado em imaginar o primeiro momento das coisas, me pego pensando na primeira pipoca já estourada: um grão de milho caído perto de uma fogueira que abria um clarão na noite escura e, poc!, transfigurado num milésimo de segundo nessa branca flor com textura macia de isopor.
Quando lancei essa newsletter, em fevereiro de 2022, fiz e distribuí para gente querida uma quentinha cheia do que eu queria semear: belezas como o tempero feijão perfeito com jeito de poção mágica da Angeli, de Paraty, a paçoca de moinho de ferro da Só Paçoca e o milho de pipoca agroecológico e multicolorido da Maravilhas São José. E a pipoca fica colorida?, quem recebeu queria saber. Não. Ela em si permanece alva; colorida fica a parte de dentro do que, instantes atrás, fora milho. Aliás, você já tinha atinado que o milho de pipoca, miúdo e redondo, é uma variedade diferente do milho de comer, de grãos mais largos e chatos?
3. Mil e uma pororocas
Além da clássica, de milho estourado com sal no pote da batedeira de casa, lembro de outras. Aquela pipoca do saco rosa forte transparente, vendida no sinal, pouco doce e meio firme, que achicletava a mordida. Em Belém e aqui em Portugal, as doces que são coloridas, não pelo milho, mas porque são estouradas com anilina comestível. Na Bahia, a Magrela de saco com gosto de casa, todinha natural. Nas festas infantis de hoje em dia, pipoca gourmet, porque aparentemente tudo tem virado gourmet quando quer se enfeitar. Cobertas de leite Ninho e mil outras modas super-doces e ultraprocessadas, que nunca comi para poder dizer.
Longe de sua vida de milho, pipoca-simbólica no carnaval de Salvador é a massa de foliões que pula do chão de alegria sem ter que pagar caro pelos abadás de quem se acha mais importante. O mesmo no BBB da tevê para falar de quem é comum. Ambos retratos falados da divisão classista recreativa que ainda tempera o Brasil.
4. No escurinho do cinema
Chupando drops de anis, eu lembro, a bala azul da marca Kiss, mas sempre com um saco de pipoca à tiracolo. Não é surpresa que a venda de pipoca sustente as salas de cinema, dado o preço do milho, muito baixo se comparado aos loucamente altos das pipocas à venda com litros de refrigerante, superando o valor do próprio ingresso. Pipoca que se come sem fome, na compulsão de uma cena tensa, os olhos grudados no filme, a boca e as mãos ocupadas. Minha adolescência enfurnada em um shopping depois da escola foi à base delas, e de um cinema em que o saco podia ser preenchido de pipoca uma segunda vez. O resultado? O saco dobrado e levado pra casa, enchido na faixa no próximo filme.
5. Memória
Quando afloram num ímpeto quente, outro filme completo com cinco sentidos explode na minha mente. O cheiro da cidade na porta da escola, os sacos listrados de papel colorido, os fogareiros de chama alta lambendo o fundo grosso e bem areado da panela de alumínio com manivela e pega de madeira. Vertida, a avalanche fumegante que enche as vitrines, o calor da lâmpada escaldante que mantêm tudo ainda quente e crocante. Me postava diante do carrinho mesmo sem dois reais para dar. Adorava assistir aquele espetáculo.
A panela pipoqueira que a tia Lelete tinha e sempre quis ter. Barulhinho bom e oco que vai tomando o ar inteiro de assalto e quando se expandem ao ponto de não caberem mais na panela, levantam a tampa como se bisbilhotassem o mundo real. Mundo à parte eram as doces, carameladas, proeza que só pipoqueiros de rua sabiam fazer. Não houve uma vez em que tentasse que não saíssem queimadas.
6. Com as mãos
Comidas que se comem com as mãos têm passaporte irrestrito a todas as cavidades do meu coração. Há qualquer coisa de aterrador e sensual, para dizer o mínimo, nesse ato tão íntimo entre corpo e comida. Na volta da pandemia, senti coisas esquisitas ao ver que os pipoqueiros tinham adotado, ao lado do guardanapo, o uso de uma pinça plástica descartável para que os fregueses levassem à boca cada floco de pipoca pocada. A ideia da pinça é particularmente útil àqueles que pedem capricho no esguicho de leite condensado por cima, mas também nos faz pensar em uma vida colada nas telas, uma em que as pontas dos dedos precisam estar sempre livres para rolar o celular. Útil também à distância que o tempo vem impondo entre nosso corpo e o que comemos: não bastassem os talheres, queremos higienizar até aquilo que sempre se comeu com as mãos.
7. Não é besteira
A mãe de Xuxa acreditava que sim: Mamãe diz pipoca é besteira / Que não fede nem cheira / Que é um monte de nada. Sem entrar em méritos nutricionais demais, pipoca natural, feita de milho estourado e um tico de sal, ponto e basta, é fonte de fibra mais honesta e verdadeira que muita coisa embalada. No dendê, meu jeito favorito, fica pintada de amarelo e carregada de gosto. Mas ao contrário do que se possa pensar, o fio de qualquer óleo só se usa para engraçar: pipoca estoura perfeitamente na panela só com milho e ar quente.
Depois que passei a morar sozinho nunca tive microondas. Me acostumei e não sinto falta. Mas ao longo da infância, sobretudo na era de ouro das locadoras de vídeo (uma saudade imensa, aliás), pipoca era de pacote, três minutos girando ou o próprio botão que dizia: pipoca. Lembro do gosto da contravenção infantil de abrí-lo ainda cru e ver os milhos encravados numa barra branca de aditivos, conservantes e aromatizantes loucos para serem manteiga. Um crime, ultraprocessar um negócio tão simples.
8. Piruá
Só aprendi essa palavra no ano passado, quase trinta anos depois de lidar sempre com eles nos dentes impacientes de trás. Piruás são aqueles milhos mau estourados, os que sobram no fundo do pote, e que às vezes, no afã de prolongar a festa da boca, os lábios já feridos de sal, a gente ainda insiste em mastigar. Para Rubem Alves, piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar, mas também, numa metáfora existencial, representa um tipo de alguém: “Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem. (…) A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira.”
Aprendi, também há pouco tempo, um jeito de evitá-los, guardando o milho de pipoca no congelador. Estouram mais e melhor, já que a água que guardam, congelada, explode em vapor mais bonito e mais dicumforça.
9. Atotô
No terreiro que frequento, a imagem de Obaluaê, orixá da cura e das doenças, é a mais bonita. Quando se faz qualquer honra a ele, há sempre um paneiro com búzios pendurados na borda cheinho de pipoca fresca pousado no peji. A tradição oral conta que a palha da costa que cobre todo seu corpo esconde as bolhas e feridas de sua pele, representadas nas flores de pipoca. Uma história linda que a ebomi Cici de Oxalá conta aqui.
Quando em Salvador, às segunda-feiras, sempre foi hábito da minha família passar na igreja de São Lázaro e São Roque, fincada no topo de uma colina na Federação, para tomar banho de pipoca no pé da escadaria, sincretismo em carne e osso entre o candomblé e o catolicismo popular. O banho purificador é dado pelas mãos experientes de mães-de-santo paramentadas com suas vestes e contas sagradas. As pipocas são esfregadas pelo corpo da cabeça aos pés ao mesmo tempo em que a boca das iyás transmite o axé, afastando o que seja mazela e quebranto e atraindo toda a sorte de caminhos abertos, misturando atotô e Glória a Deus. Para quem nele tem fé, a pipoca é a flor da cura de todos os males do corpo e do espírito. Atotô é sua saudação, e significa a antítese — ou consequência — da própria pipoca: silêncio.
Eu sou muito fã dos seus textos. Adoro fazer pipoca com dendê, fica tão bom. Na infância, o pipoqueiro da porta da escola já reservava a cota para os alunos que vinha com as mãos estendidas em concha pedir um chorinho. Hahaha
Pipoca é vida. É janta. É distração. É cura.
Beijos.
Que texto gostoso de ler! Lembrei de duas histórias boas com pipoca. A primeira, foi quando a minha prima me ligou perguntando quanto de água tinha que usar para fazer pipoca (!!!). Ela ia cozinhar os milhos kkkkkkkk. A segunda, eu fui numa loja de artigos religiosos com minha filha, que na época tinha uns 3 anos. Enquanto eu comprava as coisas do meu barquinho de Iemanjá, ela estava comendo as pipocas que estavam nos pés de uma estátua kkkkkkkk