Tivemos sorte ao encontrar, nos proprietários do apartamento em que moramos, uma família que nos adora e adoramos de volta. Telma e Zé são um casal típico de Coimbra. Boêmios e bem despachados, pais de duas adolescentes ótimas. Na primeira visita agendada, sem corretor nem nada, apareceram com quatro minis1 geladas. Ele disse que ergueria o brinde mesmo que não fechássemos negócio, já que era seu último dia de férias. Dias depois, contrato assinado, não querem jantar lá em casa? Rimos, comemos, aprendemos sobre o bairro, o Mercado, as leis de trânsito, o Alentejo e Os Lusíadas.
Um sábado chuvoso nos fins de dezembro, passamos uma tarde na casa deles ao redor de um robalo assado sobre cebolas e batatas novas. Levamos um vinho e voltamos com outro, sem rótulo, que sua irmã faz no Norte, pra lá de Guimarães. Primeiro na cozinha, todos ao redor do fogão; depois na sala, sentados à mesma mesa que guardava os chocolates e os queijos do Natal, só recolhidos no Dia de Reis. De vez em quando, ele, que não vive longe daqui, nos liga e pergunta se não queremos descer para tomar um copo. Em outros dias, os convites são mais elaborados.
Outubro passado, e então, querem ir à vindima? Claro que sim, e fomos cedinho à Cantanhede, ao talhão de vinhas de um amigo apanhar, ao lado de mais uns vinte amigos, as uvas que vendia para a cooperativa local. Melhor que a manhã cortando aqueles cachos enormes de tintas foi a pausa para a merenda. Um saco de pães de lenha, uma peça de queijo curado de ovelha, um canivete e a sombra tranquila de um velho olival. Melhor que a merenda foi quando a colheita acabou e esperava por nós um grande almoço partilhado no clube recreativo da cidade, uma aldeia que leva em seu nome o meu sobrenome do meio: Pena. Panelas imensas de chanfana, o prato de cabra velha sobre o qual já escrevi aqui, pernil no espeto com molho rico no pincel, o corpo cansado do trabalho abastecido e convertido, agora, em uma alegria desvairada. Comendo e repetindo sem cerimônia nem temperança. Tudo em torno da comida.
Semana passada, veio outro convite. A enésima edição de uma festa dos gaiteiros, no mesmo clube da Pena. Dessas tradições tão enraizadas que, no fundo, parecem só mais uma desculpa para se juntar, conviver e festejar a vida e o encontro. O cardápio era surpresa, e foi boa a notícia quando descobri que eram favas. Favas sazonais e polêmicas, que muita gente diz não gostar. Feitas à moda da Pena, ensopadinhas, com rodelas de chouriço, ovos mexidos e um gosto intenso de ervilhas. Grandes como feijões gigantes, macias e quase cremosas por dentro. Nunca tinha comido. Gostei muito, lamentando em voz alta ter demorado tanto a conhecê-las. É que só as temos nessa altura do ano. Dizemos que as favas são os feijões de maio, maio as dá, maio as leva, me ensinou Dona Lusitana, uma das anciãs dessa vila, e com esse nome tão português que parece ter sido inventado.
Dina, outra local da qual só sei o apelido, e não o nome, nos perguntou se estávamos gostando, e ao ouvir que sim, feliz em nos ver felizes, foi tão sincera ao dizer Gosto muito que vocês gostem disso. Me coloquei no lugar dela, lembrando das vezes em que levava não-cariocas aos meus lugares no Rio, orgulhoso em saber que eles reconheciam valor naquilo que era tão natural e valioso para mim. Dividir o que gostamos com alguém é uma coisa boa, um sentimento engraçado. Fazer isso por meio da comida, tenho certeza, uma de suas manifestações mais bonitas.
Uma hora, Zé nos destacou da roda e nos levou à pracinha vizinha onde acampam uma vez por ano, há anos. No sopé de uma pedreira, tudo coberto de amoreiras enormes, carregadas de frutos pretos e rosas, amoreiras que ele lembra em que Primavera foram plantadas. Contou causos da sua infância passada ali, da vontade de morar no campo e de tudo o que viu mudar de lá pra cá. Vimos uma lebre pular e se esconder. A primeira que eu vejo solta, na natureza, em toda a minha vida. Na Pena, sempre essa flecha de querer voltar.
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Minis são como chamam, aqui em Portugal, as garrafinhas de cerveja de vidro, com 200ml
A imensa sorte de conviver com quem também valoriza a comida assim !
Um texto para ser transportada de Brasília para Coimbra. Obrigada sempre.