Meu consumo de qualquer tipo de carne tem diminuído de forma consciente ao longo dos anos, e mais ainda depois que me mudei de país. São vários os motivos, a maioria discutida neste texto, um dos mais difíceis da newsletter. Com a chegada em Portugal há outros, como o ritmo bem marcado das estações do ano. Se a gente para e repara minimamente nisso, aprende na marra a comer melhor. Certas coisas simplesmente desaparecem das prateleiras, e paciência, só ano que vem. Outras, constrangidas, crescem forçadas de agrotóxico e é difícil não notar, no preço e no gosto. Dá aquele senso de urgência e importância que devia ser a base da nossa relação com a natureza, essencialmente sazonal: a terra que deveria escolher o que a gente come, não o contrário. Mas isso é outro papo.
O fator novidade em experiências com vegetais antes desconhecidos, ou, agora, bem mais acessíveis, também tem mantido minha atenção ocupada. Nabiças, as ramas jovens do nabo, amplamente usadas, ótimas em sopas. Os vários grelos (a quinta série que habita em mim saúda a quinta série que habita em você), verdes amargos e floridos, restritos aos dias frios de inverno. Aspargos, couves-de-bruxelas, o funcho e os tomates de muitas variedades (meu favorito é o coração de boi, disformes, enormes)... Sem falar dos queijos de cabra e de ovelha, das castanhas, cogumelos, arrozes e frutas. No inverno, comer framboesas sem falir; no verão, sentir a elegância dos figos. Esperar pacientemente pela primavera de mirtilos e morangos tão vivos que deixam rastro de perfume na rua. Ainda por cima em Coimbra, com uma vida de cidade pequena, mais tempo para pensar e cozinhar tudo isso.
A regra, então, tem sido deixar as carnes para pratos muito específicos, que costumam envolver um ritual de memória e domingo. Rabada, moqueca, galinhada ou salpicão, bem de vez em quando. Outra exceção são as idas a restaurantes ao desbravar as especialidades locais que parecem estar longe de acabar. Sobretudo aquelas praticamente impossíveis de se reproduzir em casa.
A chanfana é uma delas. Um dos pratos-símbolo da região onde estamos, o Centro de Portugal, um ensopado de cabra velha (sim, velha) no vinho tinto. E é a partir daqui que, por falta total de propriedade para falar sobre ela, reproduzo o que ouvi de quem sabe. E respondeu, sorrindo com os olhos, as mais minuciosas perguntas que fiz quando fui, semanas atrás, ao berço da receita, a cidadezinha de Miranda do Corvo. Um povoado minúsculo cuja praça central está, nessa altura do ano, colorida de camélias, e é sempre cortada por um ribeirão que chia um barulhinho relaxante de cachoeira. Poucos passos dali, atrás de uma portinha, A Parreirinha, um daqueles tradicionalíssimos restaurantes locais, serve chanfanas e outros tesouros regionais desde 1985.
O nome do lugar, e cada vez gosto mais de como são literais, deve-se, obviamente, a uma parreira que havia bem no meio do terreno onde o restaurante foi erguido. Preservada com um buraco no chão, a parreira ainda está lá, ao lado das pipas de madeira de onde jorra o tinto da casa, comprado a granel de um amigo do dono, que produz nas redondezas. Um vinho firme, puro, vinho de lavrador, com o gosto da cozinha dali.
Nas mesas postas do vasto salão há sempre pão, azeitonas e sachês de manteiga e patê de sardinhas. Nas vitrines geladas, as mesmas sobremesas que encontro em todas as tascas de Portugal: arroz doce, musse de chocolate e baba de camelo, uma musse mole de doce de leite com aspecto viscoso, além de alguma fruta da época, que por ser era inverno, era tangerina. Carina, funcionária há décadas, é o tipo de pessoa que equilibra a simpatia com a timidez. Não fala muito se o freguês não quiser saber. Mas se quiser, senta, que lá vem história. E eu sempre quero.
A receita nasceu aqui mesmo em Miranda?, perguntei. Já há quem faça por outras partes e diga que é sua, mas, sim, a receita é nossa. Achei bonito quando ela disse, com ar de desgosto, que Vila Nova de Poiares, cidade eleita como a capital universal da chanfana, não era a dona da receita original. Botam cebola! Não fica boa!, disse, em tom disparatado de vê se pode. Depois, se corrigiu: Quer dizer, boa, pode até ficar, mas não é a original.
Para Carina (e aposto que para todos os mirandeses), essa conversa nem existe. É Miranda do Corvo a capital da chanfana. Na verdade a receita nasceu no Mosteiro de Semide, uma freguesia nossa. Na época das invasões francesas, os monges se fecharam no mosteiro e cozinharam com o que tinham: a cabra que criavam, o vinho que faziam, o forno à lenha. E por que velha? Tem que ser velha mesmo? Claro que tem, se for alguma carne muito tenrinha, vai se desfazer no molho. Por ser rija, a carne da cabra velha fica macia por todas essas horas de cozedura, mas sem desmanchar-se.
A carne é marinada com muito alho, sal, folhas de louro e doses de segredo, coisa que não se diz nem se pergunta. Na panela de barro (chamam caçoilo), cozinha por cinco, seis, sete horas nas fornalhas de lenha — e tem que ser de lenha! —, imersa em vinho — e tem que ser vinho bom! —, o vinho da casa, o mesmo das pipas de madeira, o mesmo que está nas nossas taças. Depois desse tempo, tudo que ferve ali dentro, nem é preciso dizer, se conhece numa intimidade brutal. A carne desfia ao simples toque do garfo. O vinho e a gordura viram uma amálgama brilhosa cor de ferrugem, uma graxa divina, um gosto intenso difícil de explicar e esquecer.
Serve-se a panela direto na mesa, fumegante e guarnecida com batatas, que costumam perguntar se queremos fritas ou cozidas, e peço sempre cozidas porque, amassadas, absorvem o molho rico como uma esponja. Dessa vez, acompanhou também um punhado de couve lombarda, de folhas bem enrugadas, só aferventadas e assustadas no azeite, meio firmes e crocantes ao mesmo tempo que macias na perfeição.
Mais batatas? Mais couve? Mais vinho? E foi trazendo sem regras, uma travessinha, meio jarrinho, sem cobrar a mais por isso. Aquele ser um negócio cuja função é o lucro parecia importar menos com o fato de Carina querer nos fazer completamente felizes, deixar-nos satisfeitos, como acontece, enfim, nos verdadeiros bons restaurantes.
Na saída, paramos na porta da cozinha para agradecer, como sempre fazemos, e Dona Palmira, também nativa da região, estava lá, bracinhos cruzados e semblante inquieto. Já tinha chegado nela nossa excitação em tudo querer saber. Recostada sobre o fogão impecável, desandou a falar: Cozinho aqui desde os meus dezesseis anos [hoje, já tem seus 50]. A dona, Dona Ofélia Preciosa, morava por cima, descia e nos ensinava a fazer. Perguntei os ingredientes da chanfana e ela foi categórica: O menino que venha cá comer! Isso não é receita de se fazer em casa! Pois é, respondi, ainda não tenho toda essa sabedoria e muito menos um fogão de lenha. Mas na sua casa tinha? Sua família fazia? E estufou o peito de ar, orgulhosa: Ah, sim! Uma vez por ano, na festa da terra, se matava a cabra e se enchia o forno de chanfana.
Esse, o jeito antigo de se comer carne, é o que faz sentido para mim, hoje. O tom sagrado de respeito e aproveitamento total da vida ceifada. A carne é a festa e vice-versa, representa um ponto de orientação na vida daquele lugar, daquela comunidade, daquela família. Celebração da vida apesar da morte, o consumo da carne não é banal, mas o oposto disso: é simplesmente o dia mais especial e esperado do ano. Levamos três litros de vinho para casa em garrafas de água mineral, um sorriso escancarado no rosto e o silêncio ruidoso da nossa cabeça encaixando as peças do que tínhamos acabado de viver. Na paisagem da verde volta, um rebanho de cabras levado por um pastor de um talhão de campo a outro e uma olaria em que as panelas de barro eram a atração principal. Virei para o meu marido e disse: que dia vamos voltar?
A quinta série por aqui 🫣
E eu pensando na D. Palmira com seus 50 e eu com meus 51 🤔 não me sinto Dona Andrea ainda kkkk
Uma singeleza de texto e consciência na forma de se alimentar. Há esperança para a humanidade, prefiro acreditar 🙏🏽
que texto gostoso. minha relação com carne também tem sido bem próxima a essa, de comer em momentos especiais ou quando a pessoa que prepara está ali nos servindo com o coração. fiz uma trilha na chapada diamantina e cheguei numa casa que o rapaz fez uma galinha com macarrão que eu não tive como declinar. ele preparou com tanto carinho (e lavou também todas as minhas roupas, porque percebeu o quanto estava cansada). Nunca esqueço dele, um rapazinho morando sozinho no meio do Vale do Pati que fez o melhor macarrão com galinha que já comi na vida.
beijos.