Um café é só um café, o líquido escuro coado, afirmaria qualquer desavisado. Mas dependendo do lugar de onde se fala, um café pode não ser só um café. Depois de ir e vir, viver e voltar, sigo achando lindo que na Bahia* tomar café constitua refeição. Talvez em outros estados que desconheço com intimidade também seja assim, mas na primeira capital brasileira, se alguém te chama para tomar café, uma coisa é certa: não vai ser só um cafezinho (e com sorte um pedaço de bolo), beijo e tchau. Vai ter sempre aquele plus a mais — um café de mesa posta, que antecede ou substitui o jantar. “Substitui o jantar, não. É o nosso jantar”, corrigiu meu pai, morador de Salvador, quando fui assuntar.
Na casa de sua mãe, a senhora minha vó Nilzete, café sempre se tomou na mesa da cozinha. Costumava ter macaxeira cozida bem mole para comer com manteiga Regatas da lata baixa ou do pote de meio quilo. Os tubérculos, na verdade, variavam: mandioca, inhame, cará ou batata doce eram cozidos macios e cortados em fatias grossas, comidos ainda quentes no prato duralex. Bolo chileno (um bolo fofo com leite do coco) nos dias mais dispostos e sempre pão de cacau, um pão pequeno e adocicado que ela comprava aos montes naquela mesma padaria na Cidade Baixa, guardados em uma grande caixa plástica na geladeira, intercalando as camadas com papel toalha e outros pães de aipim, batata, milho e leite.
Um quarto de queijo cuia para fatiar na hora e presunto de qualquer padaria, mas como eu tinha vindo do Rio, ela pedia para trazer na mala porque nenhum lugar fatiava fininho como naquele mercado de lá. Bananas-da-terra fritas, barquetes de beiju e cuscuz amarelo ou branco eram cenas frequentes — o primeiro, passado de manteiga, o segundo, molhado com leite de coco. Não gostava de flocão, era conservadora até em matéria de cuscuz: só gostava da Tabajara, uma farinha fina de milho não-transgênico que traziam do interior, e requeria hidratação e peneiração. O resultado era o que importava a despeito da trabalheira que dava.
Pãozinho francês se alguém chegasse e trouxesse, mordiscando a ponta de um deles. Sequilhos caseiros de goma e pão delícia bem eventuais, muito de vez em quando. Mungunzá, mingau de milho, de tapioca, aveia ou carimã; ovo mexido ou frito inteiro, feito disco-voador… Tudo isso também podia rolar. É claro, nunca essa fartura toda ao mesmo tempo. Fixa, mesmo, só aquela sopa rala com base de tomate, cebola, músculo cozido e macarrão cabelo de anjo quebrado com a mão, direto na panela. A lata de leite em pó (antigamente leite de saco), a tevê ligada baixinho naqueles programas sensacionalistas que ela adorava e ele, enfim: o preto café passado que dava nome ao evento.
Café assim se toma pelas seis, nunca muito mais. Para comer sem pesar, sem ter que fritar a cabeça para pensar no que fazer pro jantar. Enquanto o da manhã se faz sozinho ou entre familiares, esse café-refeição é mais convivial, tem espaço para visitas ou qualquer um que se achegar. Para esse café se convida, e eu ouvia minha avó dizendo no telefone para as amigas: Venha tomar café aqui em casa, fia.
Era com ela que tomávamos café das últimas vezes em que fui visitar. Uma das cenas mais singelas da minha lembrança vem desses tantos momentos passados ao seu lado desde a infância: o modo particular como minha avó esfriava a sopa no prato, puxando do fundo para as bordas num movimento ligeiro e contínuo, quase como quem bate ovos com o garfo, fazendo que a sopa quente viesse à superfície e a fumaça cessasse mais rápido. E toda vez que tomo sopa, batata!, lembro disso. Lembro dela. Vívida.
No Pará, café tem tapioca e pupunha
Basta pensar nisso tudo e minha banda paraense, ciumenta, já me cutuca. Porque, para falar bem a verdade, no Pará também se toma esse café-refeição. Muita coisa permanece como na mesa baiana, mas outras mudam de figura consoante, é claro, a cultura alimentar do lugar. Protagonistas são as tapiocas, e penso precisamente nas tapioquinhas transparentes da Dona Idalina, a Dadá, minha avó do coração, me tentando o juízo como se sussurassem: tu não vais mesmo falar de nós?
Transparentes porque são finas sem serem quebradiças, delicadamente elásticas, feitas com a goma fresca da feira da 25, anos-luz à frente das versões de pacote. Despejada na frigideira sem peneira e alisada sem qualquer outro apetrecho que não o mais essencial: a mão, as costas dos seus dedos ágeis, com os mesmos anéis apertados. Firmada no fogo baixo, cada tapioca é virada num pano de prato limpo para que respire, já que suariam se postas no prato de louça, emborrachando a massa. Técnica, senhoras e senhores.
Depois de arrefecerem mas ainda quentes, são espalhadas de manteiga Real com a bunda da colher — o amarelo absorvido pelos poros brancos da tapioca na mesma fração de segundo — e finalmente enroladas em canudos grossos para comer com as mãos, às mordidas intercaladas com golinhos de café. Experiência encarnada num corpo pequeno e dono de si, Dadá fazia assim desde que ainda não se vendia a goma pronta na feira. Hidratava os torrões do polvilho, trocando a água duas vezes, deixava assentar, esfarelava com a mão e peneirava todinha, salpicando de sal — à semelhança do que minha vó Nilzete fazia com o proceder do seu cuscuz.
Tapiocas nos cafés vespertinos de Belém só concorrem na atenção com as pupunhas, consumidas cozidas, sobretudo quando estão na época, entre dezembro e março. Os frutos amarelo-fibrosos da pupunheira (palmeira cujo miolo do caule é o famoso palmito pupunha), garantem todas as muitas paraenses da minha vida, são a melhor coisa para tomar no finzinho da tarde, bebericando café, depois da chuva.
Café, a refeição baiana, paraense e seja lá mais de onde for, tinha que ser divulgada, protegida, festejada, copiada. Principalmente porque, enquanto ultraprocessados dominam os pratos brasileiros em qualquer hora do dia, nem sempre por escolha própria, certos cantos resistem, pondo à mesa toda a sorte de alimentos vivos, preparações simples, ancestrais, nutritivas, naturais. Comida que deveria ser normal, mas de tão esvaziada, virou o que se convencionou chamar de comida de verdade, já que a comida dita comum no século 21 é mesmo meio de mentira. Café, esse nosso café, é assim. Como café da manhã, mas à-tarde-quase-noite, e com mais variedade de comida e de gente. Como café da manhã, mas com calma, tapioca ou sopa. E sempre um dedo de saudade. Não disse que nunca era só um café?
*Tomo sempre cuidado porque generalizações são sempre perigosas — e a Bahia, uma terra gigante —, mas em todos os cantos que fui, do litoral ao sertão, do extremo sul ao Abaré, na borda de Pernambuco, e em todos os outros de onde quis saber, entende-se bem o que é tomar esse café
O café servido sem os dois dedin de prosa não tem graça ! Sempre bom te ler :)
Que tapioca é essa? quero agora... misericórdia... Na minha casa, periferia de São Paulo, a janta sempre foi esse tipo de café