Domingo passado foi círio de Nazaré. Minha família se reuniu mais um ano em Belém e o coração atracado aqui do outro lado do mar, sentiu. O cortejo das lembranças me atropelou as ideias, flechou o meio do peito, e num momento de bunda na cadeira que parecia inócuo, em que pensava em dizer mil outras coisas, senti vazar tucupi amarelo pelas pontas dos meus dedos brancos. Não deu. Recomecei o texto.
É que círios são catalisadores de muito sentimento junto na nossa banda. Tem a fé, é claro que tem a fé, mas tem sobretudo a nossa reunião. São em outubros, mais que em natais, aniversários e quetais, os encontros anuais dos nossos muitos parentes espalhados pelo país. Um ajudando o outro a pagar a passagem, transferindo milhas, arrastando móveis e encaixando colchões para que todo mundo possa chegar. Outubro é sempre outubro: tempo de estarmos juntos como a família numerosa e apartada fisicamente que sempre fomos, desde que todo mundo começou a voar pr’além de Belém do Pará.
De todos os anos, lembro de tudo. De quem madrugava para acompanhar a santa e chegava com os pés ensanguentados, o mindinho massacrado e um pedaço da corda de sisal que liga os fiéis à berlinda florida, e que levavam orgulhosos na carteira até o próximo ano. Dos tacacás e da rosca de tapioca da Dona Maria, na frente da basílica, perto do parque de diversão que se armava sempre naquela época e era meu paraíso infantil. Dos carangas no Rubão, dos lanches no Mengão, das madrugadas na Ester regadas a Tijucas geladíssimas. Das manhãs no Veropa com as magias da Miracy; vendo a Baía de Guajará comendo dourada frita com açaí. Nas noitinhas ventando nas Docas com sorvete de queijo cuia ou chope de bacuri. De tomar sorvete Cairu todos os dias, aliás. De tapioca, carimbó, paraense ou uxi. Dos planos combinados pra antes ou depois da chuva, que chora diariamente — copiosamente — pelas três da tarde, limpando o céu para a chegada do arco-íris.
Nos preparativos do grande almoço de domingo, as mulheres da família montando com esmero a salada cascatinha, com camadas de camarão salgado, batata, cebola, tomate, pimentão e ovos cozidos regados com bastante azeite português. Tia Vera vertendo os litros de tucupi da Eliete, comprado na feira da 25, no pato do Seu Carneiro, tudo feito de véspera. Tia Eliane subindo na banqueta de plástico para mexer o panelão de maniçoba que passava a semana no fogão. No centro da mesa, um vidro cheio de farinha baguda de Bragança. Para as crianças e os paladares que não se habituavam à acidez característica do tucupi, sempre houve uma carne com molho cremoso de castanhas do Pará, que só de pensar, me vem o gosto à boca. Tudo servido quente, apesar do calor úmido e equatorial que deixa o corpo peguento, não só nesse mês.
Um dia de lei para visitar a Dadá e comer as tapioquinhas etéreas que já descrevi aqui. As vezes de imunidade baixa em que gripava e era cuidado com leite quente e açúcar queimado, um gosto tostado de carinho que não esqueço. Indo com o tio Tatá cedíssimo comprar açaí na Iaçá, ele me apontando a feitura do açaí branco, a bacaba, me explicando que aquela era outra fruta, de outra palmeira, todo orgulhoso da sua terra. De dormir dias e dias na rede. Dos mergulhos de igarapé na Ilha do Combu quando meu irmão começou a fazer seu Street River, um festival de arte urbana que leva grafite e infraestrutura para as comunidades ribeirinhas esquecidas pelo poder local.
Não sei bem a história da Nazinha, levada pelos jesuítas; o que sei é que a fé nela move gente de todas as fés nesse frenesi catártico que é sua romaria. Não é de surpreender que a maior festa religiosa do país seja católica, já que foi essa a religião incutida ao povo brasileiro há mais de cinco séculos de História. A fé da festa, porque não sou cristão (e porque não sou de Belém), portanto, não entendo. A fé na festa, a das pessoas, ela sim, é bonita de se ver. Uma fé cultural, mais do que propriamente religiosa.
De todo o clima de emoção (e é mesmo muita emoção brotando daquele chão), gostava particularmente do nosso momento ecumênico: no meio do círio da Nazaré cristã, reservar uma tarde inteira para deixar baixar nossos ancestrais. Caboclos, pretos-velhos, erês, malandros, sereias amazônidas e princesas turcas com suas palavras e receitas de cura. Começava com os pontos tocados em CDs num rádio antigo, defumando a casa. A Sandra chegava e a gira girava. Nunca saímos de Belém sem lágrimas, recados, graças pedidas e alcançadas. Boa parte delas não costumava vir das falanges de Deus. A fé, enfim, era a desculpa para estarmos juntos. Para comer, beber, rezar, pedir, chorar, sorrir, brigar, reatar e se deixar encantar. Porque outubro que vem, todo mundo vai tentar voltar.
*O título dessa crônica foi inspirado neste álbum delicioso de Gilberto Gil
Comecei lendo com o coração apertado de nostalgia. Depois deu fome e vontade de procurar como fazer carne com creme de castanhas. Agora choro porque nossos ancestrais não nos abandonam nunca.
Eu amo a frase desse titulo. Me emocionei te lendo, quem mora longe está fadado a saudades. Algumas são imensas assim como o círio que deve ser lindo demais.