Se te soltassem em um lugar que você não sabe qual é, descobriria onde se está só ao olhar para as árvores ao redor? Se abundassem mangueiras, mangueiras frondosas e antigas, mangueiras de copas densas e mangas pesadas, eu diria sem pestanejar: tô em Belém do Pará. A cidade, conhecida, não por acaso, como cidade da mangueiras, tem nessa árvore asiática, mas tão belamente adaptada ao Brasil, seu sombreiro natural contra o clima equatorial, encimando praticamente todas suas grandes ruas e avenidas.
Fiz as contas e me envergonhei com a quantidade de tempo em que eu não voltava a Belém. Oito anos. Belém para onde fui, por toda a vida, pelo menos uma vez por ano, praticamente todos os anos, visitar a família e festejar o Círio de Nazaré. Foram só quatro dias em que não coube o que eu queria fazer: voltar à Ilha do Combu para dar um mergulho de igarapé, conhecer a Ilha do Marajó que sempre fica para a próxima visita, provar novos sabores da Cairu porque não me aguento e sempre volto aos meus favoritos. O de tapioca, mastigando com cuidado os flocos macios que se desfazem na boca; o de queijo, ponteado do rosa-choque do queijo cuia, o jeito descolonizado de chamar o que em outros cantos ainda chamam de queijo do Reino.
Três e tanto da manhã, fui do aeroporto direto para a Feira do Açaí. Um lugar misterioso, de uma beleza crua, onde desembarcam e negocia-se os paneiros do açaí recém-apanhado das ilhas, que abastecem os batedores da cidade diariamente. Um bar com tecnobrega nas alturas é o único som estridente, enquanto quem percorre os caminhos estreitos delineados pelos paneiros empilhados de açaí parece comerciar em silêncio. As bolas pretas e brilhosas da fruta refletem a escuridão da noite. Um momento único, de pura reverência ao alimento que é, ao mesmo tempo, o símbolo e o sustento desse lugar.
“Já babujou?”
Belém guarda minha espiritualidade, sempre foi assim. Dessa vez, o encontro foi ainda mais forte e bonito: nasci para o santo em um jogo lindo de búzios. Contas, imagens, receitas de como agradar meus orixás. Com o bàbá que cuida da minha família e fora filho de santo da minha tia-avó ialorixá, Mãe Maria de Odé, sobre quem já contei nesse texto. Tive, ainda, o privilégio de ir a uma festa de saída de santo no Abassá Ogum Megê, terreiro de Tambor de Mina onde meu primo se iniciou, cuja iyá descende de um dos primeiros terreiros de africanos escravizados da Costa da Mina a funcionar no Maranhão. Uma saída de Obaluayê, o grande senhor da cura. Estar de frente de um orixá e, ajoelhado, pedir sua benção, encostando minha cabeça na sua, foi, sem dúvidas, um dos momentos mais bonitos que já vivi.
Findado o momento sagrado, a festa, como toda festa de terreiro, espalhou sua abundância pela porção profana: havia comida e bebida para quem quisesse chegar, latas e mais latas de Tijuca brotando geladas de todos os cantos em uma noite de samba guiada pelo caboclo da casa, Caboclo Ceará. Um panelão de maniçoba e uma travessa da carne desfiada que, mais tarde, descobri que era carne de bode, parte da obrigação da feitura daquele santo. O sacrifício, enfim, vivendo seu ponto alto mais significativo: o de ser aproveitado integralmente, servindo de sustento físico e espiritual para a comunidade, encarnando a essência da partilha e simbolizando o respeito absoluto pela vida ceifada em honra divina. A prioridade era saber se todos os convidados tinham comido bem: Já babujou?
“Tu tens sementes de cumaru, mana?”
A ala mítica das erveiras do Ver-o-Peso reúne fileiras de mulheres sabedoras dos mistérios e mandigas de todas as sortes por meio das folhas, raízes, banhos, poções, pomadas e garrafadas feitas à base dos produtos da Amazônia. Mirací foi quem sempre cuidou de nós, nos abastecendo de tudo que o corpo precisasse, ouvindo tudo o que o sagrado pedisse. Conhecedora profunda do seu ofício, me disse que passou a plantar muitas das ervas que vende porque trabalha com macumbeiros antigos, que pedem coisas, hoje em dia, difíceis de encontrar — peão-pajé, destranca-tudo, cachorrinho, mão-aberta, marupazinho, ei-de-vencer..., foi me apontando na foto de seu quintal na Cesário Alvim. Contei da minha dificuldade de encontrar nossas ervas em Portugal e lamentei meus banhos de alecrim, alfazema e louro, ao que ela respondeu, me botando pra cima: Só o louro já é tudo, meu amor!
Nas vias vizinhas, a sabedoria familiar se espraia, sempre encantada pela oralidade: Mirací é irmã de Miraní e de Sara, cada uma com sua barraca. Filhas de Dona Isabel, a primeira erveira da família, que levava a prole ainda criança ao Ver-o-Peso, onde aprenderam o mercar que hoje fazem de sustento. A tradição segue viva porque é transmitida: Kellen, filha de Miraní, e mais dois de seus irmãos, já têm lugar cativo no mesmo corredor cheiroso. Quando uma não tem, pede pra outra: Tu tens semente de cumaru, mana?
Na rua, na feira: a verdadeira cozinha de cada lugar
Toda cidade brasileira tem seus carrinhos de cachorro-quente, mas de todas as que conheço, nenhuma tem a cultura do sanduíche de rua tão forte quanto Belém. São muitos os clássicos que ficam e os novatos que pipocam a cada ano. Ao longo da vida lembro particularmente do Big Mengão, do Milleo e da Ester, essa última, musa inconteste do sanduíche de leitão (que no Rio chamamos só pelo corte, pernil), feito no pão careca (nosso pão francês), sempre puxadíssimo no limão. Dessa vez, estreei um novo: Rosário Lanches, defronte à Praça da República. Cachorro-quente sem salsicha, mas com picadinho (que no Rio chamamos de carne moída), salada fresca com muito coentro e um movimento digno de domingo à tarde, ainda que fosse madrugada de dia útil.
Primeiro dia no Ver-o-Peso, unha de caranguejo com suco de muruci. No segundo, almoço no box da Oswaldina, de número 52, comendo a melhor dourada empanada da minha memória. E com feijão de caldo, arroz solto, farinha baguda de Bragança e cumbuca de açaí grosso pra “colherar” na boca. Sentindo de longe o cheiro fragrante do tucupi e da maniva cozida tomando o ar morno de assalto. Marejando de perto a Baía de Guajará.
“Farinha que não dá azia, freguesa?"
Na feira da 25, acompanhei minha tia comprando os 14 litros de tucupi da Eliete para o Círio que se aprochegava. Comprei a farinha biscoito da Mili com a observação mais carinhosa: não é farofa, mas é torrada na manteiga Tourinho, e a ressalva que suas farinhas não davam azia. Mais farinha na mão de Dona Maria, feirante que é da região Baixo Acará e mexe com farinha desde a entrada do real, sempre provando direto da saca, arremessando à boca e me treinando na proeza de não derramar um grãozinho sequer no chão.
Pupunhas já cozidas, que não estavam na época, mas Dona Mira, conhecida como a Rainha da Pupunha, sempre tem: Se eu voltar na próxima vida, eu quero vir feirante de novo. Camarão regional para fazer camusquim, uma sanduicheira de alumínio que eu precisava há tempos e beijus redondos de tapioca para lanchar em uma tarde dessas. Pirarucu seco e enrolado na feição de charque. Café da Baixinha, Açaí do Heron, Box da Denise, tudo em letras garrafais.
A faixa-bônus: visitar Icoaraci, subúrbio de Belém, onde minha mãe e seus irmãos cresceram. Passar na frente das casas onde moraram, a orla onde brincaram, a escola onde minha avó ensinou, me mexeu de um jeito bom. Ver, viver e reverenciar o caminho que minha família traçou. Honrar de onde a gente veio; reconhecer onde a gente chegou.
Veja a viagem em movimento nesse videozinho que fiz e publiquei no Instagram.
Amei conhecer um pedaço de nossa terra!
Grata Matheus, por contar a estória, a religião e o modo de vida do Povo do Norte.
Pelos seus olhos traduziu em palavras escritas, a cultura gastronômica de um povo
Me senti lá.
Axé!
Amei! Obrigada por ter vindo e matado nossa saudade também. Te amo ❤️