No dia em que embarquei para Salvador, recebi a notícia de que minha dissertação de mestrado, “Comer de mão e o caso do capitão: corpos, identidades e resistências”, tinha ganhado o primeiro lugar no II Prêmio Igor de Garine e seria publicada como livro digital por um selo ligado à Unesco. Uma prática brasileira, popular e ancestral, celebrada num prêmio espanhol concedido aos melhores trabalhos de pós-graduação em alimentação no campo das ciências sociais. Antes de ficar meio besta, dei uma certa travada.
Ter convivido com quem fazia da vaidade sua pior bandeira me fez dobrar a vigilância em não ser igual. “Vaidade é um espelho em todos os lugares ao mesmo tempo”, diz meu livro-amuleto* de infância. Mas o freio não durou muito. Porque não achei o espelho, e porque nada mudou em mim, só deu raiz à certeza. “Certeza é quando a ideia cansa de procurar e para.”
Talvez por isso, desde que recebi a notícia, tocando outra pesquisa em Salvador, só faço chorar pelos cantos, vó. Um choro salgado de alegria e orgulho de ter escolhido com tanta certeza falar desse tema que é tão nosso. Tão seu. De vê-lo chegar em lugares tão diferentes e distantes do lugar — do quintal — de onde ele partiu em forma de memória. Desde aquelas tardes de infância no quintal da casa do Barbalho, seu jeito de me alimentar me marcou. Você provavelmente não sabia. Não deu tempo de te dizer. Eu mesmo só fui descobrir quase trinta anos depois. No susto de escolher um tema de pesquisa que me representasse. Dessa premissa eu não arredaria.
Você não queria que eu saísse do Brasil, achou que eu me afastaria da família, perderia o contato, simplesmente não via serventia. Mas viu como eu sigo mais junto do que nunca? Tão perto que ganhamos um prêmio. Dizem que significa sucesso, mas sucesso já me parece vaidade e sinto uma ponta de enjoo, o mesmo que chega sempre que insisto em escrever em primeira pessoa. O livro-amuleto diz que “sucesso é quando você faz o que sabe fazer, só que todo mundo percebe”. Assinto; acredito que também seja isso.
Sinto o reconhecimento, e isso me faz feliz. É uma felicidade coletiva. Não só por mim, pelo reconhecimento desse trabalho, que é trabalho e que é árduo, ainda que seja íntimo e meu. Feliz pelas tantas mãos e corpos inteiros que o fizeram comigo. Especialmente por pessoas como você e tantas outras, vó. Gente simples e do sertão, que não negociam suas identidades e seguem comendo e dando de comer “de mão”, ainda que no balcão da cozinha, ainda que atrás da porta encostada. Ainda que tenham mudado para a cidade e de vida. Há uma parte que não muda: a parte que come em busca de se reconhecer. A que volta a flecha do tempo para a infância, a sua própria infância, e reproduz o modo como já viu quem você amava comer, e muito provavelmente, te alimentar.
Eu te revi em quase todas as pessoas que entrevistei: as mesmas perguntas que eu te fazia na cozinha — e isso, com quem aprendeu? — e você não sabia explicar, só fazer e dizer que foi a vida, meu filho, e ainda achava a perguntação sem sentido. Porque ninguém tinha te dito que tinha valor e muita técnica por trás de cada vatapá, de cada xinxim, de cada caldeirão de feijão. Era pura ciência seu jeito de operar a faca elétrica que deslizava pelo pernil de Natal. Que dizer do fino traquejo social em marcar território pintando o fundo de suas travessas marinex com suas iniciais, NH, em esmalte rosa-choque para que não se perdessem na vizinhança e ninguém se engraçasse em levar sem devolver? Assino meus emails assim, MH, no fundo, porque me faz lembrar você. Para que a gente não perca o contato.
A farinheira
De volta à rotina, em Coimbra, investigo minha própria relação com o comer “de mão”. Eu mesmo tinha reservas em “sujar” as mãos comendo assim, como muita gente come. Logo depois, me constrangi e pus aspas: comida não é sujeira. Como
escreveu, “nunca entendi toda suja de terra”. Ainda assim, nas refeições desde a volta, me enfrentei e fui soltando a prática. Sentindo cada vez mais prazer, sobretudo quando a comida pedia — qualquer dia em que houvesse arroz, feijão e farinha — ou quando a saudade apertava.Antes disso, havia outras barreiras: a escolha muito reduzida de farinhas — uma, para dizer a verdade, a única à venda no supermercado do meu bairro, e bem mediana, mas que já era uma salvação em dias de falta e farofa. No Brasil, e nesse caso na Bahia, sobretudo nas feiras, a fartura de farinha é minha definição de luxo. Cada banca são várias sacas, e muitas de produção pequena, nada industrial, com história e nome de quem faz. Já que o conteúdo não empolgava, seu receptáculo menos ainda: a farinha aqui de casa vivia num pote de vidro com tampa de rosca, reaproveitado de alguma conserva, e que chamava as duas mãos na hora de desenroscar.
Os dias em Salvador me apontaram uma objeto que me faltava como um órgão, junto com uma boa farinha: a farinheira que ganhei de aniversário. A cidade tinha me deixado órfão de farinheiras de mesa, tão essenciais e onipresentes quanto pratos e panelas em todas as casas e restaurantes. De plástico ou inox, com bico ou colher, elas, o coração da mesa, permitem servir a farinha usando uma só mão, sem qualquer esforço. Não raros, afinal, são os casos (as casas) em que a outra mão está ocupada, envolvida com a comida.
É precisamente por isso que comer “de mão” tendo uma farinheira melhora tudo: com a mão esquerda levanto a tampa e encho a colher de farinha. Polvilho o prato por inteiro, como quem desce um véu. No primeiro toque, a farinha finíssima faz carinho na minha mão. Depois, vai se entranhando em todo cantinho molhado de comida, dando liga, estrutura. Colando tudo com muito mais propriedade que a outra farinha que tinha. Sendo fundação, mandioca, enfim.
A mão direita junta bolos de comida com as pontas dos cinco dedos, aperta a massa na palma da mão até que o bocado descole, pronto para ser levado à boca. Retoco a farinha ou o feijão quando a textura assim exige. Sem jeito, mas cada vez menos, chupo cada um dos dedos sem me sentir infantil ou inadequado. Boa farinha e farinheira depois, como no seu habitat natural, certas casas e quintais do Brasil, meu comer “de mão” fluiu.
Um dia, numa brecha do campo, eu passei lá, na casa onde cresci, aquela onde vivíamos esse momento íntimo que alimento até hoje. Os mesmos flamboyants flutuando laranjas na entrada da sua rua. O quintal de cerâmica vermelha, parede azulejada e piscina de plástico. Seus dedos grossos amassando minha comida, seu corpo inteiro se movendo junto. As pontas de suas unhas longas e limpas tocando meus lábios. Seu rosto satisfeito em me ver comer e o gozo em se exibir para o resto da família, viu como ele come comigo?
A casa está em reforma. Arrancaram o nosso jasmim. A escadaria do quintal, por onde sempre entrávamos, está pelada de plantas, irreconhecível. Outra história vai florescer por lá. Queria que estivesse aqui para ver tudo isso, vó. Quando soubesse do prêmio, você me chamaria de danado, mesmo sem entender muito bem a função de escrever um bando de páginas sobre seu jeito de comer. Soubesse que não te veria mais, tinha pedido que me desse capitão na boca. Me dissesse para lhe pedir a benção e me desse de comer “de mão”, da sua mão, pela última vez. O prêmio e a farinheira, solenes e prosaicos na mesma medida, chegaram praticamente juntos, vó. E vieram me dizer quase a mesma coisa: quem eu sou e de onde eu vim.
*Mania de Explicação, de Adriana Falcão
Terminei chorando, emocionada, pelo prêmio, pela sua vó, pela comida, pela sua escrita, pelo livro amuleto ser o Mania de Explicação...por tudo! Parabéns, amigo!!
o prêmio é um reconhecimento mais do que merecido por manter viva não só as suas memórias, mas a de uma parte significativa do brasil que aos poucos vai se perdendo… parabéns! 👏