Existe algo muito próximo entre os primeiros encontros amorosos e conhecer restaurantes pela primeira vez. Aquela efervescência nova, o frio na barriga, o risco gostoso do que não se pode prever. As expectativas do caminho, a espera, o clímax e a despedida. O dia seguinte e o desenrolar da relação. Os ventos do bom início em que tudo é descobrimento, e, se algo encaixa, passamos a voltar mais vezes. Nos fidelizamos e até perdoamos alguns deslizes, nos restaurantes e nas pessoas, porque o que é bom supera o que não agrada.
Morar em um país estrangeiro, e ser estrangeiro aos modos locais de cozinhar, servir e comer, revela um mapa ainda mais detalhado sobre aquilo que ainda resta a explorar. Há sempre um canto antigo que, para mim, é sempre novo. Sempre uma recomendação que cai como uma luva nas mãos dos meus desejos. Secundarizada, a necessidade básica de me alimentar, porque está garantida, dá lugar a uma dimensão que parece cada vez mais importante: a de sentir prazer pela comida, observar seus contextos com atenção e escutar as histórias que partem de cada lugar, cada prato e cada pessoa.
Desbravar restaurantes pela primeira vez, e grudar em nosso álbum particular os favoritos, os não tão memoráveis e os involtáveis, então, tem sido uma prática corriqueira em qualquer nesga de tempo livre. São quase sempre restaurantes simples os que mais gosto (ou restaurantes normais, como cunhou certeira
nesta edição de sua news, ). Restaurantes sem pompa ou afetação, sem cartas longas de vinho ou modas da vez no cardápio. Restaurantes com preços pagáveis, e cujos maiores atributos são a boa comida e o fato de me fazerem sentir completamente à vontade. A ponto de querer voltar.Em Portugal, restaurantes normais assim são as tascas, tabernas e casas de pasto, espaços de comensalidade popular, parentes próximos do que entendemos como os nossos botequins. Restaurantes onde se bebe o vinho da casa e há sempre pão à mesa. Onde, nos casos mais fartos, a “dose” serve dois, às vezes três, e a “meia-dose” serve um, às vezes dois. Onde as mesas são forradas com papel e costuma haver um cardápio escrito à mão do lado de fora ou avisos de época em letras garrafais, como há caracóis ou temos cozido. Entro. Não pelos caracóis ou pelo cozido, para os quais nem ligo tanto, mas pelo que o hábito de escrever uma sugestão à mão e pregá-la à porta diz sobre esses lugares, de onde raramente saio decepcionado.
Primeiro porque, sorte ou não, o compromisso com a comida bem-feita parece ser realmente transversal à maioria dos restaurantes que conheci nos últimos anos nesse país. Prova disso são as batatas fritas, quase sempre caseirinhas, quase nunca congeladas. Até nos lugares mais simples, de comida mais barata ou cozinha diminuta, até naqueles em que seria compreensível usar batatas fritas congeladas, não usam. Cortam-se e fritam-se batatas. E orgulham-se disso, cientes da grande diferença que essa pequena escolha faz.
Certo dia n’O Salgado, em Coimbra, que serve seu almoço com sopa, prato farto, meio litro de vinho e cafezinho a módicos oito euros, presenciei uma cena maravilhosa no salão. Um freguês regular (pela roupa, operário da obra do metrô que acontecia na rua vizinha; pelo tom, íntimo daquele lugar) reclamava da demora de seu prato, bifinhos de vitela com arroz, salada e batatas fritas.
Seu Zé, saindo da cozinha que toca sozinho, dizia: “Esta cabecinha — e bateu três vezes com a ponta do indicador na têmpora direita — às seis da manhã já estava a trabalhar para esta casa”. E continuou, resoluto, mandando a real: “Já viu quantas doses de batatas servimos ao mesmo tempo? Para uma entrar [na fritadeira], outra tem que sair. A solução é fazer as de pacote, que são mais rápidas, essa é a solução. E isto não vou fazer”.
Na Casa Armênio, em Tentúgal, a fachada, o interior e o tratamento são mesmo de casa. A especialidade, o pato assado com batatas às rodelas e nacos de laranja, me lembrou a alma do pato paraense antes de receber o tucupi. A vitrine de queijadas empilhadas, tão lindas, não seria nada sem o carinho em perguntar se queremos as mais clarinhas ou as mais tostadas. Me emocionou o zelo do dono, que, ao ouvir nossa opção entusiasmada pelas segundas, levantou o véu de tule branco que as cobria e buscou com olhos atentos por aquelas mais crocantes e caramelizadas, mais pintadas pelo forno de lenha que denunciam no gosto. E assim vão aparecendo, cada um por seu motivo, os restaurantes que me arrebatam de um jeito muito próprio. Aqueles onde vou uma vez, para onde volto e já não largo de jeito nenhum.
Assim foi com a Casa Costa, em Coimbra, onde já aportamos tantas vezes porque a comida é boa, barata e descomplicada, apesar do atendimento tão apressado. A Churrasqueira do Mondego, também aqui, porque tudo corre de modo exemplar nos domínios culinários, mas termina ainda melhor, e atipicamente, quando Dona Margarida está: quem conhece e pede, ganha um número particular de fado, cantado do fundo da alma, de olhos fechados, expressão sentida e mãos pousadas sobre o colo. Seu marido e sua filha, que tocam o salão, ficam felizes quando pedimos e ela canta: “Faz muito bem a ela, precisa exercitar a memória”.
O Mugasa, em Sangalhos, pelo leitão sem paralelos que ofusca o ambiente enfeitado. O Estrela do Oriente, no Porto, pelos pastéis de bacalhau fritos na hora, mordidos mornos à mesa, uma banalidade no Rio, mas raridade em Portugal, onde os fritos geralmente comem-se frios. O Escondidinho, em Cavaleiros, porque come-se à vontade e com muito capricho, e pelo bom-humor da Andreia, que adora os brasileiros e as novelas turcas.




Já são três idas à casa vermelho-cereja do Rodrigues do Bacalhau, sempre levando gente diferente. O Pedro, que continua o legado do pai, só abre aos almoços e com prato único, alento de indecisos como eu: o melhor bacalhau (foto que abre esse texto), sem qualquer gota de dúvida, que já comemos nessas terras distantes das nossas. Demolhado no ponto, assado no carvão e despetalado sem espinhas, o peixe é coberto de alho cru e cebolas só assustadas no fogo, rodeado de batatas preparadas ao murro e de um jeito que parecem pedras, com a casca opaca e desprendida do interior macio como manteiga. A travessa, reposta sem custo caso a fome persista, acompanha, ainda, uma salada de tomates divina, tão simples, só de tomates e cebolas temperados com azeite e vinagre.
Quando elogiei pela primeira vez o queijinho de ovelha servido na entrada, tão habitual nesse tipo de mesa, mas de gosto marcante e qualidade notadamente superior que o de costume, a satisfação no rosto de Pedro não escondia o critério depositado em cada escolha que faz. Encheu a boca para dar a referência, e conjugando no coletivo, com um brilho discreto nos olhos: “É mesmo bom, não é? Esse fomos buscar em Sousel, no Alentejo”. Os copinhos de jeropiga, que pareciam sedução de primeira vez, se mantiveram em todas as outras, oferecidas como cortesia quando já estamos de pé no balcão, pagando com gosto mais uma refeição memorável, a preços francamente bons (15 euros por pessoa, bacalhau e bebidas) pela qualidade do que se come e pelo carinho com que se é tratado.
Bacalhau tão bom assim só comi n’A Paragem do Motorista, um restaurante de beira de estrada em Sertã, onde se come um lombo alto, lindamente assado, com a superfície tostada, por apenas nove euros. O laço de fita? Cebola crua picada, salsinha fresca e uma tigela de azeite fumegante com alho, para deitar por cima de tudo, e observar o azeite ferver, entranhando seu sabor na alma salgada do peixe.
Mais um? Pedir um copo de vinho branco, pousarem na mesa uma garrafa praticamente cheia e dizerem: beba o quanto quiser. Não pela vantagem que senti como cliente, percebam, mas pela disposição genuína em proporcionar uma refeição agradável e abundante, como se faz para si mesmo ou para algum familiar.
Ver como servem as azeitonas, quais são os tipos de pão, se vêm na cestinha de palha, de plástico ou num ninho mimoso de algodão. A primeira mirada ao salão, a pontinha de dúvida se o atendimento vai ser carinhoso, objetivo, ou, na pior das hipóteses, grosseiro ou rabugento. O modo como cortam o queijo, se o vinho é servido na jarra de vidro ou naquelas tão bonitas, de barro.
Se a iluminação é acolhedora, se o banheiro é limpinho, se a cadeira dá gastura quando arrastada no chão ou se pensaram até nisso, colar um quadrado de feltro em cada um de seus quatro pés, miudeza do maior valor. Vigiar pela janelinha da cozinha quem está ali dentro. Me demorar reparando em quem serve, como falam da comida que servem, os olhares que lançam às travessas de batatas, tachos de sopa e tacinhas de licor. Sim, gosto do arrepio das primeiras vezes. Mais ainda, da sensação de segurança de todas as outras.
Eita, covardia. Li esse post com fome.
Li antes do almoço. Aguei e me emocionei. Vamos voltar logo no Rodrigues??