(Cata o feijão, se carecer de ser catado)
(Deixa o feijão de molho)
Arroz
Arroz Maria Isabel. Arroz de castanhas, de passas, biro-biro e de miúdos. Arroz de açafrão, amarelo-clarão. Arroz de cenoura, laranja de vida. Arroz de festa e arroz dia-a-dia. Arroz maluco, arroz à grega, arroz carreteiro e de cuxá. Arroz de leite, de coco, de suã e de hauçá. Arroz de forno, recheado de muitos retalhos. Em Portugal, o arroz de feijão com fundo caldoso de tomate, avermelhado. Arroz de brócolis, verde-triunfante. Arroz com ovo e leite Ninho, coisa minha e do meu pai. Arroz paraense, cozido no tucupi. E sem desvios ou outra coisa que não seja alho e óleo, só ele. Arroz branco, cara-metade de feijão. Lavado ou não, de uma ou duas águas. Terra firme do prato. Beleza purinha.
Pega o alho, descasca o alho. Pica/corta/fatia/soca/pila/pisa/machuca/rala o alho. Pega a panela, liga o fogo, põe a panela lá. Gira um fio de óleo ou de azeite de oliva, ou se for na Bahia: azeite doce. Entra com o alho e mexe até começar a perfumar, antes de começar a escurecer. Vê e ouve o cheiro.
Bota o arroz na panela pelando, provocando um som de chocalho quando chega metálico e meio bruto, como se um copo de pregos tivesse sido vertido. Envolve de óleo e alho todos os grãos de arroz, absolutamente. Escuta o chiado da friturinha fina envolvendo tudo de gosto de alho e de brilho. Sentir isso: que o arroz precisa fritar e brilhar.
Deite água quente aos canecos, no dobro do arroz (um dedo acima dele). Mais ligeiro se a água chegar agitada, já borbulhando enfurecida, arrebentando com fúria bolhas grandes no primeiro contato com o chão quente da panela. Pitada do sal que é um dom, como dizia Dona Canô, mas que é prática e tempo, erro e acerto, dedo roçando dedo, mais que colheres de chá. Deixar secar e abafar. Soltar com o garfo, afofar e servir.
Como sabem? Como dominam com tanta destreza as ciências exatíssimas do arroz? De tanto perguntar e reparar, vejo é que aprenderam de ver-fazer, de fazer errado no início, de fazer tanto e para tanta gente que nem pensam mais no que estão fazendo. São manobras pessoais tão entranhadas no exercício de ser quem se é, em que viver e cozinhar há muito tempo viraram uma coisa só, um a extensão do outro. É pela intensidade do frigir na panela, que chia de um jeito certo naquela altura de fogo, daquela boca, daquele fogão. Uma beleza gigantesca, pequenina, mas singular.
Trecho de Baião de dois, feijão com arroz
Feijão
Feijão-de-corda, macassar, caupi, bolinha, espada. Feijão branco, preto, verde e vermelho. Feijão canário, de porco, olho-de-cabra, olho-de-pombo e cavalo. Azuki e bolinha, mungo e moyashi, fradinho, rajado e jalo. Feijão amendoim, andu e mangalô. Feijão roxinho, rosinha, manteiguinha e sopinha. Tantos e tantos outros, proezas da agricultura familiar. E ele, a espinha do corpo, a costura do forro: feijão carioca ou mulatinho. O feijão da feijoada baiana, recheado ou donzelo (só puxadinho no alho). Volúpia.
Escorre o molho do feijão. Afervente ou demolhe as carnes que precisam de largar o sal e recheie o feijão de calabresa/paio/salpresa/sertão/toucinho/jerimum/mandioca/jiló/cogumelo/berinjela/tofu/beterraba/couve ou do que bem entender, inclusive nada disso. Mas incluindo louro/alho/cebola. Tempere como gostar: hortelã grosso e miúdo, salsa-coentro-cebolinha, pimenta e cominho, coentro largo e colorau. Pimenta-de-cheiro. Quioiô.
Faça questão de ter tudo bem refogado/recheado/alourado/suado/dourado até que ganhe cor de saúde. Venha com o feijão demolhado, batucando diferente de como batuca o arroz na panela. Cobre de água, taca no fogo, pega pressão e acerta o tempo, mais um tom difícil de agarrar. Depois de pronto acerte o sal, e se qualquer outra coisa não comparecer, reforce com mais alho dourado na frigideirinha de ovo frito. Junte a ele uma concha do feijão quente, amasse e volte pro panelão. Engrosse fervendo baixinho.
Outro dia, num botequim, ouvi perguntarem na mesa vizinha a marca do feijão servido ali. Queriam comprar igual e fazer em casa. Feijão é isso: fidelidade. Também é fertilidade, continuidade e comunhão no sagrado. É comida de santo. (…) Feijão faz feijoada, um prato alegórico, bolinho de feijoada, feijão-tropeiro, acarajé, abará. Faz tutu, palavra mimosa que pode falar de balé, num giro leve, e de feijão com farinha, um pouso pesado.
Trecho de Baião de dois, feijão com arroz
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*Verso de Adélia Prado em “Grande desejo”
"Faz tutu, palavra mimosa que pode falar de balé, num giro leve, e de feijão com farinha, um pouso pesado."
amo tutu! o nome traz um carinho prévio à primeira garfada.
um beijo.
uma dupla imbatível! que delícia!