Acho graça em como algo pode ser desconhecido para nós, e, num instante, tornar-se parte inseparável do que conhecemos, impossível desver. Com aspargos brancos foi assim. Nunca tinha pensado sobre eles até começar a trabalhar com comida. Para o cotidiano brasileiro, aspargos em si já são coisa distante. Meio alcachofras, completamente alheias às nossas culturas alimentares, comuns apenas nas cenas daquelas novelas que já não se fazem mais. Mais ainda os brancos, secundários na imagem que projeto quando me lembro de aspargos: verdes, pontudos, classudos, crocantes. Esses, fui comer depois de adulto em risotos de italianos arrumados, para onde a vida de jornalista me levou. Mais tarde, na França, posando lânguidos no prato, servidos como entrada fria.
Nas primeiras viagens para a Europa, os via verdes nas feiras e me espantava de beleza. Quando cruzei com a variedade clara pela primeira vez, tão frescos e rijos, senti o gosto do susto. Aspargos brancos, na minha cabeça, eram completos estranhos até aquele dia de inverno. E de repente, num estalo, lembrei que era de aspargos, e de aspargos brancos, aquela sopa-creme que aparecia com frequência nos almoços e jantares na casa da tia Lirinha, minha tia-avó, cenário incontornável de muitas cenas da minha infância e adolescência. Tia Lirinha tinha mesmo a ver com aspargos: altiva e elegante, era a mais chique da família paterna, sempre de salto alto, maquiagem e colares de pedras.
Então veio a revelação: praticamente a vida inteira comi aspargos e não sabia. Brancos e em conserva, convertidos na sopa aveludada da irmã mais velha da minha avó. Lirinha para alguns, Lira para minha avó, Mãe Jóia para poucos e Cremilda nos documentos, cremosa como a sopa.
As refeições vividas ali eram diferentes de todas as outras. Eram banquetes de família em que todos sentavam-se ao redor da grande mesa de madeira escura da sala, comendo e conversando ao mesmo tempo. Um ritmo distinto do que sempre vivemos na nossa casa, onde comíamos na mesa da cozinha, e muitas vezes transbordávamos, comendo em pé apoiados na bancada, mais petiscando que comendo de fato. Quando havia mais gente, íamos comendo pelas cadeiras, dispostas soltas pelos cantos da sala, ou no sofá, sempre com o prato no colo, e em momentos diferentes, nunca todos ao mesmo tempo.
Enquanto nas nossas mesas sempre se fez um único prato, na tia Lirinha havia sempre mais de uma opção de tudo: entradas, pratos e sobremesas. Faziam-se frituras, e porque eram raridade lá em casa, eu me esbaldava: pastéis de carne de entrada e batatas palito, macias e deliciosas, para acompanhar algum principal. A felicidade aumentava nos dias em que havia empadas de palmito, e mais ainda se fossem promovidas à principal, subindo ao posto de empadão. O recheio úmido, a massa quebradiça no toque do dente e o topo solto e corado, pincelado de gema de ovo.
Um dia típico poderia ter como estrelas bife à milanesa, macarronada e arroz caldoso de frango, por exemplo, tudo na mesa ao mesmo tempo. Havia sempre sopas batidas, nunca pedaçudas, cujo segredo, lembro de alguém comentar, era uma colher cheia de leite em pó, que “arredondava” a coisa toda. Lembro muito da de cenoura e, finalmente, dela: a ilustríssima, a seda pura de aspargos brancos, feita com eles em conserva. Mas sabe aquela coisa que você sabe, mas não sabe que sabe? Era assim. Eu só vivia aquela sopa e aqueles dias. Não era o mesmo eu de hoje. Não meditava sobre o que comia, muito menos sobre aspargos brancos.
Até por isso, nunca tinha pensado em reproduzir essa receita. Era daquelas que meu inconsciente devia julgar intocáveis, irreprodutíveis, porque não eram feitas apenas da comida em si, mas do contexto, das companhias, daquela casa e daqueles dias. Talvez passasse reto pelos aspargos nas prateleiras brasileiras porque eram caros ou porque não pretendia, nem me julgava capaz de fazer qualquer coisa igual ou melhor que tia Lirinha fazia com eles.
Até que, morando longe de casa e dos que me são casa, a saudade aperta de outros modos e é preciso ser criativo para se relacionar com ela. Minha estratégia mais segura é precisamente esta: seguir fazendo receitas íntimas assim, mantendo vivo o que nos conecta a quem é importante dentro de nós, e, como os traumas, as manias e as cicatrizes, nos faz do modo que somos, tão únicos.
Vendo em Portugal aspargos brancos já com preço comum, não de festa, comprei e decidi fazer. No grupo com meus pais, exibi o buquê de aspargos amolecidos nas mãos. Arriscaria a receita sem consultar ninguém, mirando na minha lembrança. Puxo os aspargos num refogado de alho e cebola e bato com algum caldo caseiro que mantenho congelado, pensei. Se preciso fosse, daria um beijo de creme de leite fresco no lugar da colherada de leite em pó, que não costumo ter na despensa.
Quando abri o vidro alongado, longo o suficiente para comportar as varetas compridas e amareladas que rompem a terra como espetos, alguma coisa aconteceu em meu coração. Senti o cheiro dos aspargos, e se vocês que me lêem pudessem me ver, veriam a expressão do rosto mudar. O que senti viajava bem além do cheiro salgado e suave, levemente ácido, que escapava do pote.
No segundo em que desenrosquei a tampa, a memória veio toda, como uma avalanche invadindo meu corpo. Trouxe o apartamento 501 daquele edifício imponente, de elevador pantográfico de grades perfeitamente douradas. O apartamento forrado de carpete e as paredes cobertas de relógios de todos os tipos que seu marido, tio Bernardo, português de Guimarães, colecionava com esmero particular.
Trouxe a lembrança do 583, o ônibus circular que pegávamos desde Copacabana para aportar naquela travessa bucólica da Rua das Laranjeiras. Trouxe tia Lirinha inteira em sua elegância e seu lirismo dizendo que o pêssego em calda, sempre combinado com creme de leite entre as sobremesas, estava “dulcíssimo”. Foi lá a primeira vez, aliás, que vi frutas em calda servidas assim, com pompa e em uma compoteira de vidro grosso, ao lado da gelatina de morango com pedacinhos de maçã, do rocambole recheado de goiabada e do onipresente pudim de leite condensado, cheio de furinhos.
A história poderia acabar aqui, mas não acaba. Tia Lirinha era uma anfitriã impecável, isso era certo, mas essas refeições carregavam outro traço que nunca passou ileso à minha percepção infantil: o fato de que aquele banquete também era fruto do trabalho culinário de outra mulher, uma empregada doméstica.
O festim gastronômico que só era possível graças ao trabalho de Kelly, uma mulher negra que fora funcionária daquela casa durante os anos em que a frequentei. Lembro dela, sempre junto de Tia Lirinha na cozinha. Porque, sem ela, nada ali seria o que era. Porque por trás de receitas familiares assim, no caso das classes mais privilegiadas do nosso país, é habitual que houvesse o labor essencial de mulheres como ela.
Essencial, então, é olhar ao redor ao celebrarmos essas memórias, muitas vezes romantizadas, e reconhecer a participação fundamental — embora frequentemente invisibilizada — dessas mulheres que, com seus trabalhos culinários, sustentaram e ainda sustentam as cozinhas e as casas de muitas famílias do Brasil.
É preciso lembrar que são elas, com seu trabalho extenuante, arriscado e mal remunerado, que possibilitam que suas patroas alcancem sua emancipação financeira, desenvolvam suas vidas profissionais e pessoais e possam cultivar outras aspirações. Importa pensar que muitas dessas receitas consideradas jóias raras nos seios de famílias brancas não foram apenas executadas, mas muitas vezes aprimoradas e até mesmo criadas por essas mulheres. Mesmo que seus nomes não estejam anotados nos cadernos de receitas que guardamos com tanto carinho. Ainda que elas não ocupem o centro da narrativa familiar de que são parte fundamental.
Há sempre gente nova chegando na newsletter, então aproveito para recomendar, não pela primeira nem pela segunda vez, a leitura daquela que considero, hoje, a mais importante obra nos estudos de alimentação no Brasil, e fala exatamente disso: “Um pé na cozinha”: um olhar sócio-histórico para o trabalho de cozinheiras negras no Brasil, de Taís de Sant’Anna Machado, servidora pública do Ministério da Igualdade Racial, escritora e PhD em Sociologia.
Fiz a receita como achei que seria. Ficou parecida, mas rala, não era aquela. Antes de escrever esse texto, decidi refazer. Agora, mais obstinado a atingir o veludo que eu conhecia, consultei uma das quatro netas de tia Lirinha, Yasmine, minha prima. Mine mexeu seus pauzinhos. Ligou para Kelly, inventário vivo do que se fazia naquela cozinha. E logo voltou com uma novidade: a sopa levava batatas, batatas refogadas com cebola e alho, os tais aspargos brancos e todo o conteúdo da água acidificada de sua conserva. Assim fiz. Deixei ferver a sopa. Reduzir e cozinhar a saudade, irrigando a consciência. À primeira colherada, meu corpo inteiro sorriu.
O livro da taís é fenomenal. Que bom vê-lo recomendado "de surpresa" aqui.
Ô Mateus, assim você nos mata de alegria! Que figuras boas estas de sua tia Lirinha e sua cozinheira Kelly, ainda entre nós (o que foi possível a você replicar a receita!). Conversas sobre cozinha, receita, convivência no espaço doméstico/familiar é tudo de bom!