Sanduíche natural
Conforto praiano entre duas fatias de pão (ou a arte dos vendedores ambulantes)
Em Portugal, sanduíche se fala no feminino e com palavra curta — uma (ou duas) sandes, invariáveis como lápis, pires e vírus. Por ser comida íntima, cotidiana, envolve apelidos carinhosos. O que chamamos de sanduba, para eles, pode ser uma sandoca ou sandocha. Se for na chapa, é tosta. Nosso misto quente, aqui, é tosta mista. Em Madri comi a versão mais farta da minha vida: a pesada zapatilla, com uma lapa de lacón, tipo de presunto bem rústico, e queijo tetilla altamente derretível, dois produtos da Galícia, Norte da Espanha. Para minha mãe, sanduíche é de queijo com banana e canela, ponto final. Já escrevi minha paixão por pão francês com mortadela. Cabem mundos, culturas, pessoas inteiras entre duas fatias de pão, uma espremida contra a outra, no meio qualquer recheio. De todos eles, um teve sempre meu coração: o sanduíche natural.
Falo daquele que considero uma instituição, ainda que a mais informal possível: o que se faz em casa, se vende e se come na beira da praia, embrulhado em papel alumínio para segurar o frescor, apesar do calor. Aquele que surfou nas praias cariocas dos anos 1980, era das dietas milagrosas e do culto aos corpos saudáveis, esse conceito tão relativo. O Brasil vivia um deslumbre com os produtos industrializados e depois importados, pura novidade naquele tempo em que tudo costumava ser tão… natural.
Você e eu somos um caso sério
Ao som de um bolero
Dose dupla
Românticos de cuba-libre
Misto-quente
Sanduíche de gente
O melhor dos mundos teria pão caseiro e maionese idem. Atum fresco, assado lentamente imerso no azeite ou selado na frigideira quente, inteiro ou desfeito com a ponta do garfo. Se de frango, marinado e suculento, com jeito de salpicão e maionese puxada no limão, como o galinhagem que se come na Slow. Qualquer vegetal crocante da época — pepino, alface, tomate — direto da feira ou do pé. Quem dera todo mundo pudesse comê-los assim, todos gostosos e naturais de verdade, como o da foto que abre esse texto, do 74, que provei em reportagem, há três anos, escrevendo um roteiro de restaurantes sobre Búzios. Mas em que mundo de todo mundo isso existe naturalmente, né?
Se fosse para ser ao pé da letra, sanduíche natural seria assim — só que não foi. Barato e substancioso, virou símbolo praiano irrestrito, mas também das casas de sucos, lanchonetes de todas as qualidades, barracas de merenda e carrinhos de café. Industrializado na maionese do pote, no pão de forma de pacote, e mais ainda depois, nas embalagens lacradas em qualquer balcão gelado de conveniência. Apesar de tudo, ainda é melhor que muita tranqueira ultraprocessada. A verdade é que sempre se fez o melhor dos mundos com o que deu. Com o que sobrou do frango assado, com o atum enlatado que houvesse. Pasta bem temperada de ovo cozido, quando nada disso desse. A verdade é que, além de forrarem o estômago, sanduíches naturais foram e são ferramenta de emancipação financeira de muita gente.
Perguntei ao Chat GPT (sim, vivo testando a criatura) a história da palavra sanduíche (devidamente checada n’outras fontes). Veio uma coisa padrãozinha, com cara de curiosidade de revista infantil, tão óbvia que beira a pieguice. “Seu” sanduíche foi um conde inglês viciado em jogatina, que de tão ávido em não perder nenhuma cartada, pediu que lhe trouxessem um bife entre duas bandas de pão, traçado com a ajuda de uma só mão. Na outra, as cartas seguiriam abertas em leque, os olhos atentos, a barriga feliz. Sandwich, o sobrenome do moço do século 18. Nítido que ninguém ali criou nada, já que pão e pensamento existiam há bons milênios, filhos de mama África, a léguas da Inglaterra. Só creditaram a ele, como ainda fazem com homens brancos e ricos, ditos importantes porque nasceram assim, em qualquer berço de ouro do Norte Global.
Não fosse a sombra colonialista que insiste em cobrir tudo, qual teria sido o momento difundido como o do primeiro sanduíche? E do sanduíche natural? Do encontro inaugural entre a maionese e o atum? E se a ordem do mundo fosse outra, e a história viesse de uma tal de Glória de Souza, mulher preta vendedora de sanduíches naturais em qualquer praia do Brasil? Todos os sanduíches do mundo, ao contrário, se chamariam Souzas? Perguntas todas sem resposta. A vida sempre cheinha delas.
Toda essa pulga veio de uma conversa corriqueira. Semana passada entrei num táxi, Fiat Tipo branco, o motorista tipo brasileiro. No banco do carona, rolavam soltos pêssegos de diferentes variedades. Servido?, ele ofereceu, esticando o olhar àquelas bolas de veludo com as cores do pôr do sol. Estava indo pegar um trem, acabei não pegando a fruta. Parado no sinal, apalpou um que eu nunca tinha visto: achatado, conhecido em Portugal como paraguaio. Tem a polpa branca e é doce, doce, parece um mel. Voltou a sugerir: Tem certeza? Imagina comer um pêssego no meio da viagem?
Papo foi e voltou, sotaques reconhecidos, perguntei de onde no Rio?, e ele, todo grisalho, convencido e malandro, sou cria de Copa. Disse que também era, tinha crescido na Constante [Ramos], ele na Xavier [da Silveira]. Compartilhávamos o privilégio branco de viver no asfalto desse bairro que dá no morro e no mar. Encheu a boca orgulhoso para dizer que fora um dos primeiros vendedores de sanduíches naturais da área. Busquei transporte, ganhei a chance de um novo modelo de pêssego. De quebra, uma injeção de memórias salgadas e essa sugestão cremosa de pauta. Quadrada e macia, embrulhada em papel alumínio, me enchendo da fome que fruta nenhuma seria capaz de matar. Acasos úteis. As tardes em trânsito sempre feitinhas deles.
— Eu vendia sanduíche natural. Fui um dos primeiros, nos anos 1980, a vender na praia de Copacabana. Acho que o segundo, para ser mais exato. Era o Léo, depois fui eu. Geraldo.
Pelos narizes cada vez mais tortos para o que circulasse sem rótulos, selos e carimbos da vigilância sanitária, o sanduíche natural assim, caseiro, coitado, foi sendo estigmatizado. “Fácil de azedar”, “você não sabe como foi feito”, “dor de barriga na certa”, o povo fresco dizia. Pode até ser verdade, mas tinha sempre uma fatia de preconceito por cima daquela preocupação. Foi pelo mesmo caminho dos camarões vistosos no espeto, alvos de uma birra gigante, que sempre comi sem neuras e com limãozinho espremido na sombra. Ainda lembro do criativo bordão do João do Camarão, famoso no Porto da Barra, em Salvador, casa de tantos verões: Eu vou que vou na virada da maré / Vou vendendo camarão e cantando meu axé / Camarão é do João / Vamos comer o bichinho, camarão camarãozinho.
Uma infância inteira tomando caldinho de sururu do garrafão térmico em Arembepe, chupando sacolés de cajá e picolés Capelinha de amendoim arrumados direto no isopor. Comendo queijo coalho com orégano e melado de cana, milho cozido com pincelada de margarina, pincel e “guardanapo” feitos da palha do milho. Brilhando os olhos para o moço que trazia os cones de papel colorido com amendoim torrado, morninho, num balde-fogareiro improvisado. No lugar disso tudo, frituras e doces de pacote, sorvetes caros com gosto de bala, todos altamente artificiais, competem com a cultura viva e de comer, feita por gente de verdade. Ao passo que ambulantes foram sendo cada vez mais perseguidos e seus trabalhos atravancados pelo poder público, a grande indústria deslanchou, já que segurança alimentar é prioridade. Mas quem assegura o sustento a quem precisa trabalhar porque está em situação de insegurança alimentar? Proibindo quem sempre viveu de cozinhar e vender de mercar?
Isso porque, no Rio, um sistema prolixo de regras que diz querer legalizar vendedores ambulantes e camelôs, na verdade, só trata de aprofundar seus processos de marginalização. Apesar de passarem grande parte da vida de frente pro mar, há pouca beleza e muita violência, agência e resistência para que esse trabalho aconteça. À mercê das fiscalizações truculentas da Secretaria Municipal de Ordem Pública, a sádica SEOP, ambulantes sofrem com apreensões covardes de seus equipamentos e mercadorias, muitas vezes com requintes de crueldade, spray de pimenta, cacetete e eletrochoques.
Viver perto do mar tem belezas, mas principalmente feiuras. Ser cria de Copa tinha desses horrores: ver com frequência cenas revoltantes assim, de trabalhadores, quase sempre negros, chorando de desespero a perda de seu ganha-pão, muitas vezes por denúncias anônimas e cruéis de cunho racista. A defesa da categoria e seus direitos é a pauta principal do Muca, o Movimento Unido dos Camelôs, um importante movimento social que na semana passada, aliás, completou 20 anos de luta.
A discriminação aparece nas entrelinhas: no site da prefeitura, para solicitar uma autorização de vendedor ambulante, um dos documentos obrigatórios, além do comprovante de residência, é uma declaração da Secretaria de Estado de Justiça “quando for o caso de egresso do sistema penitenciário”. Logo abaixo, na seção destinada aos artistas plásticos interessados em vender seus quadros na rua, tal documento inexiste na lista de exigências, assim como nem se deve provar residência, apenas fornecer o endereço do estúdio, quando houver. Em silêncio, reforçam estereótipos ao presumirem comum a condição de ex-presidiário àqueles que recorrem ao trabalho braçal e exaustivo de ambulante. Sugerem que pintores, dotados de um talento artístico e trabalho criativo, por outro lado, não estariam inclinados ao mundo do crime. Atualiza-se, mais uma vez, a intenção permanente das brancas elites dirigentes do nosso país em excluir aqueles que sempre estiveram nas ruas, movimentando a economia em nível bilionário, ocupando e alimentando as cidades. Parem o mundo que quero descer. Chacoalhem o mundo, é preciso dizer.
É verão por aqui. Nas praias dos tugas, dada a desigualdade social de outra ordem, quase não se vê ambulantes vendendo comida e bebida. No máximo bolas de berlim, tipo de sonhos açucarados que acreditam, estranhamente, combinarem com o clima tórrido dessa época do ano. Quem vai deitar na areia, o faz abastecido: enche os próprios isopores de bebidas, petiscos e sanduíches simples, de pão com pouca coisa mais. Entalei ao ver uma menina na canga vizinha comendo um de pão de forma e uma fatia fina de presunto cozido, sem qualquer malícia molhada.
Fiquei desejando que ela conhecesse o que se come na nossa praia. Ouvisse a voz empostada, aguda e estridente de uma vendedora de quem eu era freguês nos sóis de Copa, na altura da Sá Ferreira, pequeno demais para lembrar seu nome. Negra, a pele coberta de protetor solar branco, chapéu mole de sarja e sanduíches naturais ainda frios, arrumados caprichosamente numa cesta de vime, daquelas de piquenique. Vinham generosamente recheados, mas sem exageros. O ponto exato de sal, o tamanho certo da fome. Frescos e gostosos até o último farelo. Lembro do pão integral, da pasta pedaçuda e cremosa de frango, da cenoura fina, do tomate tenro, da higiene impecável de tudo. A voz que ecoava a plenos pulmões, o sotaque mais chiado e carioca do mundo, driblando a zoada das ondas na arrebentação, eco de muitas outras vozes: Saaaanduííííííxxxxe naturaaaaaal.
Mateus, que delícia de texto. Mesmo sem ser do Rio, abriu o baú de memórias e me vi na praia de Boa Viagem, em Recife, e toda fartura de comida {que ainda está lá, vale dizer} <3. Aqui na terra carioca, observo o tanto de gente fazendo esse trabalho no sol (imagino no verão) buscando o ganha pão de todo dia e me conecto imediatamente com o que observei na minha origem.
Na correria da manhã seu texto me segurou até o final. Envolvente história. Parabéns pela escrita 👏👏👏