Lá em casa, costumamos dizer que minha mãe não come as coisas com coentro, mas coentro com as coisas. Ovo escalfado com sardinha? Coentro nele! Arroz e feijão, sopa de caranguejo, molho lambão, bobó de camarão? Claro que coentro. Sem essa de que há coisas que combinam mais ou menos com ele. Sem essa de salsinha naquilo, coentro nisso. Ela é do clube do coentro em todas as situações possíveis. Em tudo. Sempre. Daquelas que não só gosta, mas idolatra, adora, divulga. Não sei como ainda não gravou um ramo de coentro na pele junto com suas outras tatuagens. Seria a décima, a primeira de comer. Coentro é vida e tempera a alma, ela diz resoluta, desfolhando um maço com as mãos, quando o assunto é essa erva arredondada de pontinhas recortadas. E frequentemente é.
Meu marido não gosta de coentro, ninguém é perfeito. Percebi que minha prima Drica, médica e exímia cozinheira, gostava realmente dele (do meu marido; do coentro, sempre soube) quando passou a reservar, nos almoços de domingo, uma panelinha à parte do seu feijão vermelho sem coentro pro Du. Porque sim, sempre havia feijão, e, sim, sempre com muito coentro picado dentro. A família de Belém gosta do coentro nas duas modalidades: o ‘normal’ e o coentro nativo, lá chamado de chicória e em outras partes do país de coentrão, coentro-bravo, largo, de peixe, de caboclo ou de pasto, facilmente brotável em qualquer vaso ou quintal.
Meu pai é baiano, que mais preciso dizer? Coisa comum é vê-lo machucando (ou processando) coentro com amendoim, castanha de caju, camarão seco e cebola, por exemplo, já que é esta uma das bases da cozinha afro-baiana de azeite. Se não gostasse de coentro, provavelmente teria sua soteropolitanidade manchada. Nos botecos da minha cidade, o Rio de cozinhas quase sempre tocadas por nordestinos, a quem perguntar se qualquer PF tem coentro ou pedir para tirar, é capaz de olharem atravessado. Acho que eu também olharia.
Toda uma comoção divide o mundo entre quem ama ou odeia esse mato inofensivo, altamente aromático, e para muitos ancestral, identitário, sagrado. Uma comoção que merece ser meditada em se tratando de Brasil, esse chão tão grande e diverso quanto preconceituoso. Há uma explicação genética que não pretendo discutir aqui, mas acredito que haja outras, de ordem simbólica, bem mais preocupantes. Será que é mesmo só o cheiro ou o sabor do coentro que desagrada a alguém, ou todo um imaginário de cozinha que essa planta representa? Há um olhar que estigmatiza, torce o nariz para as comidas e costumes que venham da parte de cima do país, onde o coentro é ingrediente importante. Costuma estar no mesmo balaio de quem vê o dendê como indigesto e acha a baba do quiabo nojenta. No fundo, há bem mais que o próprio gosto envolvido nessas recusas.
Li um livro muito interessante sobre as práticas do corpo e da alimentação na cidade de Salvador. A autora, Ligia Amparo da Silva Santos, professora da UFBA (e minha co-orientadora na dissertação de mestrado!), toca na rejeição do sabor do coentro como marcador de “uma espécie de negação de uma identidade tradicional na busca da afirmação de uma identidade moderna”. Uma identidade que pode rejeitar o coentro na moqueca ou na peixada, por exemplo, mas adorar o mesmo coentro num restaurante tailandês, peruano ou mexicano, embalado numa roupagem global. Eu mesmo conheci um sujeito que dizia não suportar coentro até viajar pro Vietnã, que tal? Ligia enlaça no mesmo paralelo brasileiros que prefiram macarrão ao arroz com feijão nos pratos cotidianos, resposta ao marketing tão ostensivo à respeito da dieta mediterrânea, coisa que parece pequena, mas, no fundo, é tesoura afiada na nossa própria raiz.
Crescendo, eu mesmo não gostava de coentro, talvez por consequência de uma introdução alimentar conveniente à ideia ambígua de paladar infantil, bife-e-batata-frita, livre de verdes. Depois fui baixando a guarda, fazendo cara de bobo quando provava e gostava, deixando a brisa do coentro bater. Amadurecendo, fui me entendendo. Percebi que a saladinha de tomates verdes do acarajé não era a mesma sem o rastro quase imperceptível do coentro pros olhos, mas batucado na boca. Que peixes e frutos do mar de qualquer jeito e saladas ácidas com grãos ou frutas da terra, como a manga ou a banana, todas vibravam mais bonito com ramos de coentro por cima. Adulto, o feijão não era mais o mesmo sem ele. Eu também não. Se antes de gostar sentia o gosto do coentro gritando, roubando tudo, ofuscando o que houvesse no prato, hoje, prevendo a falta que faz, taco coentro em praticamente tudo.
Em certos casos, acho que até exagero. Penso logo num tipo de curry indiano de frango que aprendi a fazer — murgh makhani, em hindi, ou butter chicken, em inglês — em que deito praticamente um maço inteiro de coentro por cima. A quantidade de coentro é tão indiscriminada, juro, que já deve configurar salada. Sem ele, perde metade da graça. Não sei quando nem por que razão comecei a me esmerar nessa receita que tenho repetido de tempos em tempos. Devo ter visto o molho reluzente em algum lugar e passei a desejar secretamente aquele prato picante, forte, sensual.
Antes de me aventurar a fazer, quis entender melhor, provar das mãos de quem realmente sabia. No banco de trás de um motorista de aplicativo, fiz o que sempre faço: pedir uma dica de um restaurante que ele gostasse e frequentasse. Como era indiano, Vipan, de Mumbai, me indicou o Italian Indian Palace, uma mistura improvável de italiano com indiano num bairro residencial de Coimbra. No dia em que a vontade bateu, só abriam para entregas. Pedimos e chegou voando a quentinha caprichada com nacos grandes de frango, o molho denso, cor de abóbora profundo, e uma porção de arroz basmati de perfume delicado, grãos finos e longos como alfinetes.
Desenvolvi minha própria receita de uma mistura de várias que encontrei nas internets, separando os princípios básicos, adaptando com as especiarias, os apetrechos e a disposição que tinha. Cortado em cubos graúdos, o frango precisa dormir por pelo menos uma noite em robe de iogurte natural, cominho, páprica, cúrcuma, pimenta vermelha em pó, alho e gengibre ralados. No dia seguinte, em uma ópera caramelizante, tudo isso é grelhado na frigideira bem quente com azeite e manteiga, com paciência e aos poucos para não queimar nem criar água. Reservado, o frango dá lugar ao fundo da panela, aquele grudadinho que é um templo do gosto, deglaçado com cebola e alho picados até suarem. Entram, então, as mesmas especiarias da marinada. Uma lata de tomates pelados depois, reduzo em fogo doce por quinze minutos até que o fluido vermelho vire uma grossa pasta marrom.
Depois, creme de leite e liquidificador; o segundo, passo que, tinha para mim, era um capricho estético, e sempre pulava. Gosto do molho pedaçudo, pensava, meio verdade, meio preguiça. A última vez, bati. E não é que o creme liso — aveludado, apimentado, opulento, divino — faz a louça extra valer a pena? Textura na comida é um negócio que me encanta. Pronto. Creme na panela, o frango volta e se entende borbulhando com ele, e é só servir sobre arroz — debaixo de coentro. Sempre que como fico admirado com a rima rica que dá. Penso como a vida sem coentro perde, perde muito. Nada contra a salsinha, ela só não faz o que o coentro faz. Coentro tem — coentro é — raiz.
→ Luisa Macedo, diretora do curta documental Comida de Quintal, lançou O cheiro do gosto, um livro feito de fotografias, textos e receitas envolvidos com o universo do filme. Na linda e vermelha capa, esse ícone africano, o quiabo
→ O Festival Gastronomia Preta acontece no último fim de semana de novembro, no Rio, e vai ser imperdível. Gigante o que o Breno Cruz anda construindo com esse projeto.
→ Sou louco pelo leite de pedra, doce de leite de coco com mel de engenho da Rafa Medeiros, feito em Pedra Branca, no Ceará. O trabalho de pesquisa e escrita pela doçaria brasileira em sua newsletter,
, também é um negócio lindo e importante de se ler→ Quanta beleza nesse texto do Julián Fulks sobre escrever bem
→ Passei raiva e senti orgulho da minha amiga Angela Boldrini com o podcast Caso das 10 mil
São Paulo me deu ótimas comidas, mas não ter coentro na feira e nem no mercado (pelo menos por onde estava), me deixava com peito saudoso. Sonhava com meu feijão com coentro haha Felizmente, no Rio, encontro em toda parte. Amo, amo, amo! Texto primoroso.
Mateus, amei simplesmente tudo nesta edição. Acabo de voltar de uma viagem para Londres emendada com outra pela Emilia-Romagna. Na primeira, comi num restaurante paquistanês maravilhoso chamado Lahore (e pedi butter chicken), visitei a cozinha, enfim, fiquei em êxtase. Já na segunda, bom, o food valley sobre o qual escrevi na última edição da minha newsletter fala por si só. Agora quero unir estes dois mundos neste restaurante que tu citas e que descobri que também existe no Porto, onde moro. Vou levar um maço de coentro na bolsa por via das dúvidas. Enfim, que máximo te encontrar por aqui. Um abraço!