Mudança de ventos
Trinta anos feitos e uma dissertação para entregar: essa newsletter vai mudar
Botei na boca um morango invencível. Devo ter feito cara de bobo, enrugado a testa, como se fosse a primeira vez. Um vermelho indecente tingiu as pontas dos meus dedos, um gosto de bala infantil tomou aquele instante adulto. Era a bala, aliás, que tinha conseguido imitar a fruta madura de franja verde que cabia na palma da mão. Suculentos e brutais, foram barateando a cada mês, os sem-vergonhas. Ficando mais e mais bonitos e cheirosos em todas banquinhas, mercados e mercearias em que iam aparecendo com cada vez mais frequência aqui em Portugal. Até que chegasse a primavera, seu tempo total. O carmim duplamente vivo acompanhava o azul que se concentrava no céu enquanto eu, carioca desterrado, buscava qualquer nesguinha de sol para lagartear, sentindo a pele quente. Foram morangos que me mostraram a hora de guardar os casacos pesados, tirar as bermudas do esquecimento, comer mais o que floreia, brota e ponteia para cima da terra. Outono no Brasil, primavera em mim. Tempo de arrumar a vida no compasso de outra estação.
Comecei esta newsletter em fevereiro do ano passado tomado de uma excitação que parecia não ter fim. Jorrava uma escrita represada desde a pandemia, talvez desde toda a minha vida. Escrevia seis longos textos por mês — crônicas dominicais gratuitas, edições quinzenais aos assinantes —, apostando nesse projeto com toda minha energia, meus medos, meu coração inteiro. Quando a possibilidade do mestrado se concretizou, mudei-me casado e com cachorro para Coimbra, seria meter os pés pelas mãos continuar na mesma batida. Voltar a estudar exige tempo.
Os textos para os assinantes, então, viraram um só compilado mensal de discos, livros, poesia, lugares, saudades e tudo mais. As crônicas dominicais se mantiveram: duas com acesso livre a todos inscritos, duas com um paywall em algum canto, uma decisão sempre chata de se tomar. Em que momento cortar as asinhas de quem escolhesse não pagar? Devia deixar o melhor para quem apoia? Por muitas vezes, simplesmente não conseguia ser estratégico, e escondia atrás da parede apenas o último parágrafo. Tinha pena de escrever e não mostrar.
Uma das coisas que mais gosto de ter uma newsletter é justamente a possibilidade de ser honesto com quem lê, mas também comigo, que escrevo. A verdade é que me incomodava desde o início essa história de conteúdo aberto para uns, fechado para outros. Não tem nada a ver com o que quero construir aqui ou em qualquer outro lugar. Quero mais é que todo mundo me leia. Que todo mundo leia o que considero o ponto alto do texto. Mas as contas chegam. Agora, em outra moeda, quase seis vezes mais cara que a nossa. Mesmo assim, depois de muito testar e reparar, vi que não era um conteúdo moeda-de-troca o que funcionaria como jeito de ganhar dinheiro com minha escrita. Admiro quem faz e consegue, mas não rolou por aqui. Não de um jeito que me caiba. Além disso, vocês são mais legais do que eu podia imaginar: vejo que a maioria apoia financeiramente meu trabalho (perto de 10% do número total de inscritos) porque gosta, se entusiasma com um jeito de escrever e ver o mundo no qual acreditam, se identificam. Não porque esperam algo exclusivo em troca.
As aulas do mestrado terminam mês que vem, e já estou alongando os neurônios para a pesquisa da dissertação, na qual preciso mergulhar de cabeça. Imerso num desenrolar esquisito em que, embora devesse, já não consigo mais separar o que faço do que leio, do que sou e escrevo. Já faz tempo que não sei o que é ler uma ficção sobre um assunto que não tenha nada a ver com meus temas de pesquisa, por exemplo. Ainda por cima, sou de inventar aquelas metas incumpríveis que só servem para frustrar a gente depois — ver um filme por dia, ler um livro por mês, fazer exercício físico ao menos 3x na semana. Tudo bem não dar conta de tudo que a gente se propõe a fazer, mudar de rota no meio do caminho, tenho soprado em silêncio nos meus próprios ouvidos.
Escrever textos semanais me exige, além da disciplina que não sabia que tinha, um tempo grande de dedicação. Mal publico um, já preciso estar começando o seguinte. Nas fases mais organizadas, vou tocando vários ao mesmo tempo, polindo o que precisa melhorar e pondo na gaveta a massa que ainda não está no ponto para ser moldada. Muita vezes escrevo organizadamente, de banho tomado, na escrivaninha. Muitas outras em modo caótico: no tapete da sala, na rua, no banheiro, enjoado na estrada, chacoalhando no fundo de um ônibus. Escrevo no trem, no supermercado, no caderno no meio de uma aula desinteressante, na fila do café. O pior: eu gosto. O senão: tenho um trabalho longo a escrever e defender no próximo ano, e quero fazê-lo de corpo inteiro, para que permaneça. E não acho que ninguém deveria se esgotar se puder escolher outro caminho.
Muita gente não imagina o trabalho que existe por trás de cada texto. As abas incontáveis abertas no navegador e na cabeça, as ideias de frases e palavras que rompem o meio da noite, os receios de dizer demais ou de menos, de se expor, não entregar a mensagem, confundir ou desagradar. As investigações que vão longe, em outros assuntos, só para dizer uma coisa miúda. Os artigos inteiros lidos para caberem na certeza de uma frase. A apuração que está por trás de cada detalhe aparentemente simples, e que pode, ainda assim, como qualquer trabalho humano, derrapar num erro crasso. As conversas duras e as tocantes, as entrevistas longuíssimas decupadas com ouvidos atentos, transcritas, reescritas, marinadas e postas para jogo.
Além do mestrado, ando namorando o doutorado. Me infiltrando nas licenciaturas, onde vou participar como ouvinte de duas novas disciplinas: culturas africanas e literatura são-tomense, cabo-verdiana e guineense. Sob o guarda-chuva da Casa da Lusofonia, espaço da própria Universidade de Coimbra, estou em contato com as associações de estudantes de Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Cabo Verde e Moçambique, querendo saber mais de suas culturas alimentares, traçando diálogos transatlânticos. Escolhendo a dedo, lendo e relendo a bibliografia sobre a qual quero me debruçar: Taís de Sant’Anna Machado, Sueli Carneiro, Muniz Sodré, Cheikh Anta Diop, Beatriz Nascimento, Grada Kilomba, Makota Valdina...
Por tudo isso, e para que tudo por aqui possa ser escrito com ainda mais calma e pesquisa (e lido num relógio mais tranquilo, também), essa newsletter vai mudar: as crônicas passarão a sair em domingos alternados, ou seja, semana sim, semana não. Nenhuma delas terá paywall, serão abertas a todos inscritos. A edição mensal de recomendações para assinantes também vai deixar de existir. Não é um ultimato definitivo — nada é —, mas é o que temos para hoje.
Quem assinar a newsletter, contribuindo com R$13 mensais, vai ter como ponto distintivo a possibilidade de acessar o arquivo das dezenas de edições já escritas, disponíveis apenas para assinantes. Dá para voltar num texto antigo, talvez enviado antes da época em que você se inscreveu, ver um punhado de endereços onde comer em Salvador e, naturalmente, uma lista de pratos feitos pelo Rio de Janeiro. Sobretudo, quem assina ajuda-me a seguir adiante, acreditando que é possível construir coletivamente, refletindo junto. Ainda assim, super-entendo quem achar que não vale a pena seguir assinando e quiser cancelar a contribuição. Como nunca deixou de ser, quem quiser assinar e não puder pagar só precisa responder qualquer email pedindo, e te incluo na lista. Feliz da vida.
Termino dizendo que o Substack lançou novidades nos últimos tempos: o notes, um tipo de Twitter, e um bate-papo, aos quais ainda não aderi, e pelo andar da carruagem nem tão cedo o farei. Não se espantem, no entanto, se um belo dia me virem por lá: “A vida é impermanente e é essa sua premissa. Impermanência não é ameaça, impermanência é movimento”, escreveu
num texto certeiro sobre a morte. Para comemorar, a próxima — e última — edição mensal destinada comumente aos assinantes vai vir totalmente aberta, para quem quiser ler, e sai ao longo da próxima semana.
Que relato bonito e genuíno, Matheus, quase deu pra ouvir vc falar. Boa sorte na dissertação! Que saudade me deu desse processo, me identifiquei muito com "ler artigos inteiros pra dar conta de uma frase", a pesquisa é mesmo assim. Boa sorte no Doutorado! Se eu puder ajudar com algo, só falar. Terminei o meu em 2020 e sei como pode ser solitário o processo de seleção e burocracias mil. Beijos acadêmicos!
Sigo com você, me deliciando e aprendendo com teus textos. :)