Podia ser nome de filme. Guerras das saladas, jogos famintos, Ode ao salpicão II, depois do sucesso arrasador do I. Mas esse texto só é uma versão de um já publicado aqui em setembro do ano passado, quando a newsletter ainda tinha paywall, a barreira em que só passava quem tivesse a pulserinha de assinante pago (caso não saiba ou se lembre, expliquei aqui quando resolvi mudar e todas as crônicas publicadas desde então passaram a ser de acesso livre). É que chegou o Natal, Simone cantou e eu não ouvi. A saudade enramou e só penso nele. Um senhor salpicão, receita que na minha cabeça não tem receita, e que me cola ao sentimento ambíguo de todo fim de ano. Um texto repaginado, como a alma do próprio prato.
O original tinha sido o último que publiquei antes de entrar pela primeira vez em uma sala de aula na Universidade de Coimbra. Eu ainda não tinha me habituado a usar os grifos que realçam as intenções do que escrevo, o que agora, acho, dão todo um ritmo à leitura. Tinha acabado de chegar em um novo país para morar. Ainda não tinha uma churrasqueira na varanda. A disposição e o sol que tenho agora, me dourando a pele do rosto enquanto escrevo, na reta final de um outro ano, completamente novo. Fiz uma limpa no texto e no prato: pontuações, jeitos de cortar e dizer, palavras vencidas, uvas-passas, ideias passadas. Eu mudei. Esse texto mudou. Meu salpicão, também. E eu gosto de voltar atrás e mudar.
O salpicão que descrevi (e fotografei, e comi) no ano passado, já nem lembro o porquê, tinha o peito do frango quase picadinho, não desfiado em lascas longas como quis fazer este ano. Tinha batata palha de saco, maionese de bisnaga, milho de lata. Foi o que deu. Esse ano, pus sobrecoxas de frango na brasa, marinadas de véspera, com a pele para baixo. Senti coragem em bater maionese caseira, deixando o todo mais vibrante e presente. Fiz também a batata palha, o que no texto passado dizia ser um capricho infazível nas casas que não fossem de avós. Mas que avós?, me perguntei em voz alta enquanto relia. E cá estou, sem ser pai ou avô, fazendo batata palha na boca vitrocerâmica desse fogão sem fogo ao qual ainda não me acostumei. Viu só como a gente muda, e o que se passa na cozinha é espelho claro disso?
Tem coisas que ficam. Naquele setembro, disse que guardava carinho especial por receitas assim, de um pote, panela ou travessa só, e ainda guardo. Se o tempo esfriasse, logo pensava em arrozes caldosos, gratinados, sopas e fricassês, tudo feito com sobras — e ainda penso. Disse que em todos os dias de Verão comeria um tabule inventado lá em casa, feito com triguilho, lascas de um frango que já fora galeto, pepino, cebola roxa, tomatinhos partidos ao meio e um exagero feliz de folhas de hortelã inteiras, bem frescas e tenras, tudo obra de uma cumbuca só.
Porque vivo pensando em comida, preencho os tempos vazios bolando saladas assim na minha cabeça: vinagretes de grãos, lentilhas, feijões, batatas novas e tantas outras que vão bem servidas frias, revolvidas com azeite, algum verdinho picado e uma rodada terrosa de pimenta moída na hora. Pimenta preta, não do reino, porque meu rei é o Brasil.
Salpicão é dessas. Dessas receitas que quase todo mundo gosta e têm tanto a ver com o Brasil em geral, não só em época de Natal. Cai bem em qualquer sol porque é geladinho, e pode ser ainda mais refrescante com raspas da casca do limão, talo de salsão fatiado ou um pouco dos dois. Não há regra nem limite pro gosto de cada um: salpicão pode ser mais ou menos leve, com maionese, creme de leite ou iogurte natural para dar a liga. Mais simplão, com poucos ingredientes certeiros, ou bem recheado, montanha russa de pedacinhos de todos os jeitos.
Fora os pilares mais básicos — frango lasqueado, cenoura e maionese — presentes em quase toda receita de salpicão, há quem junte milhos, ervilhas, vagens, azeitonas, passas brancas ou pretas, maçã-verde, nozes, cebola picada, abacaxi em calda e certamente mais que isso, de receitas que desconheço desse Brasil de arrojo proporcional à sua giganteza. Há quem goste do frango defumado, há quem tenha a sorte imensa de ter batata palha caseira, como a que minha tia Vera sempre levou para mim, de Belém, e que guardávamos em latas de panetone forradas com esmero e papel toalha, ou o zelo e a disposição de fazê-la, como nesse ano eu tive.
Salpicão é coisa muito familiar, é comida de festa, quase impossível de se achar em restaurantes que não sejam diários e expressos como restaurantes a quilo. Na minha família, salpicão sempre foi o prato do dia seguinte do frango assado de domingo, como no arroz carreteiro gaúcho, feito com o que restou das carnes do churrasco do dia anterior. Parece que tem um gosto ainda melhor porque é reaproveitado, curtido, duplamente cuidado e preparado.
Nas mesas de amigos vegetarianos, já provei boas versões com jaca verde, palmito pupunha ou até sem nada que fizesse as vezes de centro, como o frango (e a cultura carnívora) faz. O único consenso é que não pode faltar batata palha. Salpicão, para mim, começa a ser especial justamente por isso: é cremoso e crocante ao mesmo tempo, dois estados elevadíssimos do comer. Pretensamente leve, mas malicioso. Tiro meu pouco com uma colher funda, ponho no pote que cabe na mão e cubro de um filete folgado de azeite antes de morrer de amores por ele.
Em Portugal salpicão é outra coisa, bem diferente da nossa: um embutido grosso e defumado de porco, que vejo em todas as idas ao mercado na seção dos chouriços, paios e outros compridos. Se digo a alguém daqui que fiz um salpicão, acreditam que tenha enchido linguiça e posto no calor do fumeiro.
Tentando encontrar o rastro desse saladão icônico, hoje tão divinamente brasileiro, lembrei do salpicón de mariscos que comi anos atrás em Madri, mas que em nada parecia com o nosso. Tinha cara de conserva, e no gosto, estava mais para o que chamaríamos de um bom vinagrete de frutos do mar, como os que brilham nas vitrines da Adega Pérola, em Copacabana. Parei quando li qualquer coisa sobre chicken salad. Se tem coisas que apenas são, salpicão, definitivamente é uma delas.
A relação com a comida é viva e passível de tantas mudanças em um ano - assim também é a relação com a língua, viva, sempre, atualizada constantemente com as pessoas que falamos e ouvimos. Tanto que li um "tem gente que junta azeitona" e sempre achei tão portugues esse uso do juntar. Adorei a crônica do salpicão!
Na minha versão veg o ingrediente que dá um tchan pro salpicão é o alho-poró refogado, fica uma delícia <3