No mundo existem dois tipos de pão. Os grandes e em fatias que formam sanduíches quando pareadas; os pequenos e individuais, que cabem em uma só mão. Um belo pão de fermentação natural ou uma embalagem de pão-de-forma de supermercado se encaixam nos primeiros. O pão francês do Brasil, o bico, bijou, papo-seco ou carcaça em Portugal, e até as baguetes francesas, se cortadas aos pedaços, são exemplos dos segundos. Os primeiros têm mais miolo que casca. Nos segundos, é a casca a maior parte do pão.
Calma. É claro que é exagero dizer que só existem na vida dois tipos de pão. Evidente, existem milhares. Os discos chapados ou inflados da Índia ao Oriente Médio, como o chapati, o naan, o pita, o paratha. E tudo aquilo que não é feito de trigo, mas faz as vezes de pão, acompanhando, absorvendo, carregando a comida e dando sentido às identidades nativas ou em diáspora.
O cuscuz e o pirão brasileiros, a nossa própria farinha, bendita mandioca. As broas todas, as vidas do milho no México, o funge angolano. O amala, o eba e o fufu da Nigéria e todos os outros swallows do mundo, derivação do verbo inglês to swallow, engolir, já que são engolidos sem mastigar, cumprindo a função de “enxugar” o caldo do prato, sempre com as mãos. O tuwo shinkafa, de arroz, do norte nigeriano; o ugali, de milho, do Quênia; o tonmtonm, de fruta-pão, do Haiti; a sadza, de milho branco, do Zimbábue. A injera, panqueca fina e esponjosa da Etiópia, feita à base de teff, um cereal miudinho de lá.

Mas como falamos de onde estamos, quero falar daqueles que atendem, em português, pelo nome curto e grosso de pão, sílaba única e tônica que dá fome só de ouvir dizer. Falar da diferença entre um pão pequeno, mais casca que miolo, e um pão fatiado, mais miolo que casca. Entre eles, um biombo brutal: a textura de cada mordida. É que me faz feliz qualquer que seja um elemento crocante. Crocância da qual a própria palavra trata se lida em voz alta: aquilo que produz ruído seco ao ser mordido ou partido.
Há uma família inteira de texturas raivosas e é por elas que eu sou sempre guiado. Pela farinha baguda ou a farofa bem torrada. O gratinado que assa até o ponto dourado de se ouvir a colher afundar e quebrar. Me acende tudo que é folhado e faz barulho na boca em termos de ar e manteiga; tudo que triangula mandíbula, estrutura e colapso. O pastel de nata que estala inteiro na boca e soa ainda melhor se sujar a roupa de massa. As crocâncias do torresmo, da rapadura, do amendoim torrado e da cocada de tabuleiro, sonoras em diferentes graus.
Não nego ser a casca o que torna lindo um enorme pão rústico marrom-escuro, assado na lenha, cortado sobre uma tábua gasta de madeira, camuflados quase no mesmo entretom bombom. Açúcares caramelizados. Reação química com nome de um senhor francês. Sua grandeza costuma significar uma crosta cascuda que muitas vezes convoca motosserra em vez de faca, capaz de lascar dente ou deslocar maxilar. Mas fatie esse pão e alguma coisa subitamente se perde.
Antes dominante, a dura crosta vira borda. Margem tímida de uma fatia larga. Fino envoltório do pálido miolo, a crosta não comparece, não tem peito nem jogo para ser mordida como deve ser: de cima. Tão vasto e mole o interior, haja ferro, fogo e manteiga para que torre e volte a crocar.
Pães pequenos, não. Assados sozinhos, eles têm mais superfície de casca. No ponto certo, são crocantes por fora e elásticos por dentro. Firmes e macios na mesma medida. Equilibrados, portáteis, bem resolvidos, exatos. Mesmo o pão francês mais branquelo, de casquinha craquelada e corpo frágil, facilmente amassável, tem lá sua textura que anima a boca. A massa se rasgando com suavidade entre dentes, lábios, língua e conversa fiada.
Sei que a História comporta muitos tipos de pão. Mas minha história e minha fome reconhecem um só. Nela, pão grande é coisa recente, pouco familiar. Gosto dos pães pequenos além deles — dentro de mim. São mais copiosas as memórias. Mais fundas as histórias. Como aquela que é cena cotidiana: o saco de pão no centro da mesa, amarrotado no mesmo papel, rodeado de farelos catados com paciência, apertados contra o dedo. Aquela pessoa que no fim ou no início do dia sempre traz os pãezinhos e ainda escolhe um a um, do outro lado do balcão. E diz, como se não falasse de amor: hoje peguei o pão quentinho…
Minha primeira paixão sei bem de onde vem: do pão francês que Salvador chama “de sal”, de uma padaria que funcionava na minha rua mas já não está por lá: Ganesha Panificadora, indiana só no nome. Partia desse pão um misto-quente que meu pai preparava cedinho, colocando só quinze segundos no microondas, o suficiente para que amornasse e o recheio amolecesse, antes de me levar caminhando até a escola. Ainda lá, o pão na chapa da Padaria Yemanjá, amarelinho de manteiga, passada antes de ir dourar meiado em barquetes, e que da última vez fiz questão de encontrar.
O pão de alho da Cantina Donanna, em Copacabana, fatiado e torrado no mesmo feitio, mas farto de alho e temperinhos verdes e um molho pedaçudo de tomates para colocar por cima enquanto se arma o jogo-da-velha no papel que forra a mesa. Mesmo na terra dos pães grandes, me agarrei ao bijou da Vénus, perto de casa, mordida onde eu quero morar.
Que lindo! Eu sou apaixonada por pão. E não, não como todos os dias. Sou apaixonada por isso aí que vc escreveu. Apaixonada de saber do crocante da casca. Aqui no Maranhão a gente chama de “pão massa grossa” o cascudinho e pão massa fina o outro. Vai entender. Mas eh isso. Eu gosto tanto de pão que lembro da primeira vez que vi um pão sendo feito em casa. Parecia que era meu primeiro dia em Marte. Parecia que ninguém ao meu redor estava consciente daquele milagre como eu. Logo eu achava que pão só existia na padaria. Isso aconteceu na mesa enorme da minha vó no Pará, numas férias. Hoje em dia eu adoro fazer meu próprio pão.
Que texto maravilhoso!!! Eu fui fazendo a trajetória das texturas conforme ele se desenvolvia. Do sabor de ghee/óleo do paratha e naan, passando pelas texturas “polentosas” das minhas passadas por diferentes cantos da África (ugali ainda é o meu preferido) até a crocância do pão cascudo. Que delícia!